Nos Braços do Atlântico

Eu ia dizer que chega o calor e eu começo a passear pela Estrada Atlântica, ali entre São Martinho do Porto e a Praia do Pedrogão, às vezes subo até à Figueira da Foz para comer enguias fritas numa Estação de Serviço antes de passar a ponte, ou uns camarõezinhos com o nome da terra, mas não seria verdade, ou pelo menos não toda a verdade. A verdade é que passo o ano inteiro a percorrer a Estrada Atlântica entre São Martinho do Porto e a Praia do Pedrogão, mesmo em dias frios, de nevoeiro cerrado, chuva e tempestade no mar. Ao longo da estrada há sítios agradáveis para todas as estações do ano, mesmo as trocadas, mesmo as já ausentes, provavelmente extintas.
Da minha infância tenho memória de todas estas praias. O mar calmo de São Martinho, o nudismo nos Salgados, as marés-vivas na Nazaré, a imensidão no Vale Furado, as navalheiras frescas nas Paredes de Victória, a melancolia em São Pedro de Moel, as sardinhas na Vieira e os barcos a entrarem no mar no Pedrogão. Percorri-as todas com os meus pais nas enormes férias de Verão de três meses que nunca mais acabavam, e percorri-as também mais tarde, mais tarde mas ainda em novo, com as namoradas, cada namorada tinha a sua praia e elas eram como as praias, as mais doces, as mais tranquilas, as mais frescas, as mais reguilas, as mais espalha-brasas.
Agora ainda continuo a fazer a Estrada. Mas é já raro descer às praias. Já não tenho paciência para a areia, para as brincadeiras atléticas dos jovens efebos que correm incansáveis à minha volta, fazem-me inveja com aqueles corpos tonificados, as miúdas a tira-colo, a enchem-me a toalha de areia. Agora passeio literalmente de carro. Páro nas falésias. Às vezes bebo umas cervejas, um copo de vinho branco, de gin tónico, nas esplanadas com vista para um horizonte longínquo, a maior parte das vezes sozinho, ou na companhia de um cigarro que teima em estar sempre aceso entre os dedos da mão direita enquanto exorcizo o passado.
Houve uma altura em que ia de propósito a São Pedro de Moel para comprar pevides a uma determinada vendedora, as melhores pevides da região, depois contentei-me com os tremoços e pevides da Nazaré, mais perto, até finalmente passar a comprar os tremoços no Mercado de Leiria, são mais do meu gosto, pequenos e rijos, aproveito e compro azeitonas, várias variedades, e lá trago as pevides que, não sendo tão boas como eram as da senhora de São Pedro de Moel, não são más.
Hoje voltei a fazer a Estrada. Entrei por cima, pelo Pedrogão. Fui até ao Coimbrão e virei para o litoral. Passei de carro pela marginal do Pedrogão. Não parei. Estava ventoso. Viam-se nuvens de areia rasteira a voarem. Na Vieira não pude fazer a marginal porque não existe. Entrei pelo norte, fui até ao antigo Rio Mar e voltei para trás. Não se pode seguir em frente. Não consegui ver nem a praia nem o mar do carro. Retomei a Estrada até São Pedro de Moel. Ainda não é Verão e pode passar-se pela praça principal, lá em baixo, junto à praia, uma praça que todos os anos o mar visita. Já é praxe. Já faz parte da história da praia de eleição de Afonso Lopes Vieira e Gonçalo Byrne.
Fiz o mesmo nas Paredes. Entrei pelo norte, desci e subi e continuei em frente, estrada fora, na verdade picada, paralela ao mar, sobre a falésia.
Foi quando cheguei ao Vale Furado. Estava a pensar ir beber uma cerveja ao Mad, mas quando lá cheguei nem me lembrei mais disso. O pequeno parque de estacionamento sobre a falésia estava cheia de carros da polícia e dos bombeiros. As luzes coloridas a girarem. Alguma coisa tinha acontecido. Parei o carro. Saí. Acendi um cigarro. Avancei pela estrada. Tentei inteirar-me do que se tinha passado. Parece que alguém se teria suicidado. Alguém teria mergulhado do alto da falésia. Não seria a primeira vez. Não seria a última. Até eu já ali estivera parado, dentro do carro, uma noite inteira, à espera da coragem que nunca chegou.
Então vi um carro lá parado. O único carro que não era da polícia nem dos bombeiros. Um carro que a equipa forense estava a vasculhar. Eu conhecia o carro. Já andara nele. Já o tinha conduzido. Já tinha feito muitas vezes a Estrada Atlântica ao volante daquele carro. Era o carro dela. Foda-se! Porquê? Faltaram-me as forças nas pernas e caí. Senti um nó na garganta. Falta de ar. A cabeça à roda. Depois, acho que desmaiei.
Acordei aqui. Estou no hospital. Acho que é o hospital de Leiria, mas não tenho a certeza. Ainda não vi ninguém. Não deixo de pensar nela. E de tentar perceber o porquê, mesmo que o porquê nunca seja importante. O importante mesmo era ela. Mas pelos vistos, não muito. E sinto de novo a cabeça às voltas, às voltas, estou enjoado. Acho que quero vomitar…

[escrito directamente no facebook em 2024/06/13]

Estarei num Sonho?

Maldoror is dead / Little brick / Buried in the earth / Maldoror is gone / Was I a man? / Was I a stone? …”

Descubro-me a cruzar o pequeno jardim Camões no centro histórico de Leiria. Estarei num sonho?
A cidade está a preto e branco. As árvores são em cinquenta tons de cinza. O céu está num branco sujo. Estarei a sonhar?
Ouvi dizer que os sonhos são a preto e branco. Estarei a sonhar?
Sento-me num banco do jardim. Num banco de ripas de madeira a meio do pequeno jardim do centro histórico. Acendo um cigarro. Olho o castelo à minha frente, lá no alto do monte. À direita do castelo, na torre altaneira, as Cibeles, mais para baixo, a Torre Eiffel, logo a seguir o menino a mijar e umas putas de mamas expostas a espreitarem atrás de umas montras na avenida mais concorrida de Leiria.
Fumo o cigarro. Pergunto-me se terão droga. Estarei a sonhar?
Aproxima-se de mim uma bela fräulein que me estende uma bratwurst bem cheirosa. Estendo as mãos para a agarrar – estou com fome! –, mas o que agarro são uns fish’n’ships que uma miss sorridente, a quem falta um dente da frente, acaba por me oferecer.
Enquanto mastigo umas chips, vejo ao fundo, no fim da alameda do jardim, o Coliseu, onde uma turba de gente eufórica festeja um golo de CR7.
Foda-se! Onde é que estou? Estarei a sonhar?
Ao lado vejo a Julie Andrews a dançar no meio das vacas e o Capitão Von Trapp a entoar “Raindrops on roses and whiskers on kittens / Bright copper kettles and warm woolen mittens / Brown paper packages tied up with strings / These are a few of my favorite things”.
Uma das vacas é roxa e vem trazer-me uma tablete Milka. Mas o sonho não era a preto e branco? Era! É! Mas a vaca tem manchas roxas!
Atrás da vaca vejo passar o Eça de Queiroz na conversa com o Afonso Lopes Vieira, o Miguel Torga e o Rodrigues Lobo. Mais ao lado, afastado deles, segue o António Campos. Sozinho. Acho que vão à Praça beber umas imperiais e comer uns hambúrgueres. Ouvi dizer que eram bons. Tento levantar-me e ir ter com eles, mas acabo por ficar sentado. Alguém me traz um copo de vinho das Cortes. Um néctar de Deuses. O que os sonhos nos fazem!, penso. E sorrio. Estou mesmo a sonhar.
Acabo o cigarro ao mesmo tempo que termino com o fish quando volto a olhar para o castelo e vejo lá alguém debruçado sobre as ameias. Parece o David Tibet, mas devo estar a sonhar, mesmo. Que raio é que ele estaria aqui a fazer? Neste pequena, pobre e triste cidadezinha de província? Sem nada de interessante para ninguém? A não ser a morte?

“… / The black angel weeps / The waters part / Maldoror / Maldoror / Maldoror / All fall down / Dead.”

Espero acordar na minha cama. Espero acordar sozinho. E que ainda tenha cigarros. E vinho tinto. Umas azeitonas também não era mau. E um bocado de pão do Soutocico. Sim, não era mau. E tenho de ir cortar o cabelo. Sim, tenho de ir cortar o cabelo.
Acorda. Acorda, pá. Acorda, vá lá. E vê a vida a cores.

[escrito directamente no facebook em 2018/08/23]