Um Homem É uma Mulher numa Dimensão Diferente

Os dias repetem-se. Leio nas minhas notas, uns guardanapos de papel roubados nalgum café e guardados numa caixa de sapatos por ordem de criação, que o ano passado, há precisamente um ano, depois de uns dias de forte calor estival, finalmente a chuva.
Não que me preocupe muito, a chuva. Mas instala-se a ideia que isto anda tudo trocado, mas na verdade é que tem sido assim, só que mais intensamente. O calor é maior e a chuva é mais intensa.
É do alpendre, sentado na minha cadeira de sempre, a sofrer com alguns salpicos de chuva, a fumar um cigarro, que vejo os pingos da chuva assentar a terra do quintal que ultimamente era já só pó.
Apago o cigarro e entro em casa.
A meio da cozinha páro e olho para o tecto. E digo Está mais escuro. As horas estão a escurecer. Cada novo dia, o dia morre mais cedo. Já não há mais filmes do Rohmer. Pelo menos, não daqueles que eu gosto mais. Haverá dos outros, que também não são maus. Mas não são aqueles.
Saio da cozinha e desligo a luz. Faço o corredor quase às escuras e entro na sala. Acendo uma pequena luz indireta de um candeeiro de canto que não ilumina a sala, mas permite-me ver melhor o espaço, onde estou e onde fazer.
Sento-me no sofá. Agarro no comando da televisão, mas não tenho tempo de a ligar. Ouço uma voz sumida. Alguém que diz alguma coisa. Levanto-me do sofá e penso que estou sozinho em casa. Olho em volta. Vou ao corredor. À cozinha. À despensa. Volto ao corredor. Vou à casa-de-banho. A um quarto. Ao meu quarto. Está alguém deitado na minha cama. Aproximo-me. Estou com receio. Chego-me à cama e vejo o corpo de uma mulher deitada sobre a cama. O corpo está ferido na barriga. Deita sangue. Muito sangue. Deita sangue que empapa o meu edredão. A mulher está de olhos aberto a olhar para mim. Eu congelo. Não me consigo mexer. Não consigo pensar. Não sei o que fazer. Não sei o que dizer. Depois lá me sai Quem és tu? e ela diz Eu sou tu.
Que caralho de resposta é esta? penso para mim. A ela pergunto-lhe Como é que és eu? e ela responde Sou tu noutra dimensão, e eu pergunto E porque és uma mulher? e ela pergunta-me E porque és tu um homem? ao qual respondo uma obviedade Porque eu sou eu.
Aquela conversa parecia um diálogo de tontos. E para acentuar isso ela respondeu E eu também sou eu. Era só o que me faltava, não é? Uma tipa impertinente com a mania que sou eu. Teria tomado alguma coisa? Eu! Eu teria tomado alguma coisa que me tivesse feito imaginar estas merdas?
Mas afinal, o que é que aconteceu? pergunto.
Ela responde O mundo. O mundo está doente e as pessoas são o vírus que está a matar o mundo. Cabe-nos a nós, porque somos nós, salvá-lo. Eu já não posso. Restas tu. Tem cuidado.
Esfrego os olhos, volto a olhar e a cama está vazia. O edredão não está com sangue. Eu estou sozinho em casa. Eu sou eu e sou um homem. Não me importava de ser mulher.
De repente penso em Israel e na Palestina, não sei bem porquê.

[escrito directamente no facebook em 2023/10/13]

Escavar um Buraco numa Noite Pouco Estrelada

Tenho a cara a ferver. Sinto a cara vermelha de calor. Mas o corpo está frio. Vesti um casaco. Não está frio em casa, nem na rua, mas em mim. Estou gelado. Mas tenho a cara a ferver.
Cavo mais um bocado. Não sei quanto devo cavar, mas acho que deve ser um buraco bem fundo. Quanto mais fundo, mais difícil de voltar a sair de lá. Então cavo. Sinto bolhas nas mãos. Bolas rebentadas. A água das bolhas espalha-se pelas mãos e a pá escapa-se-me das mãos molhadas. Páro de cavar. Cuspo para as mãos. Recomeço a cavar. A cavar fundo. Já estou todo dentro da cova. Mais um pouco e não consigo sair daqui.
Páro de cavar. Tento sair do buraco. Não é fácil. Esgravato na terra. Alço uma perna, depois a outra. Lanço os braços para as mãos agarrarem qualquer coisa. Puxo-me. Puxo-me a custo. Saio do buraco. Ergo-me. Estou cansado. A boca seca. A cara a arder. Tenho frio no corpo. As mãos com bolhas rebentadas e cheias de terra. Vou à garagem. Agarro na escada de madeira. Coloco-a no buraco. Volto a saltar lá para dentro. Recomeço a cavar. Agora que tenho a escada de madeira, posso fazer um buraco mais fundo. E cavo. Cavo muito. Cavo tanto que faço sangue nas mãos. A pá está cheia de sangue. Não sinto as feridas. Não sinto as dores nas mãos. Não sinto as mãos. Cavo. Cavo um buraco fundo. Cavo um buraco fundo o suficiente para chegar à Nova Zelândia, os meus antípodas.
Estou cansado. Páro. Olho para o céu. Há algumas estrelas, mas não muitas. Não está um céu estrelado. Está um céu estranho. Vêm-se nuvens a passar. Não vejo a Lua. Acendo um cigarro. Olho para cima, para a borda do poço e penso Já chega.
Subo as escadas e sento-me no chão, na borda do buraco, com os pés para dentro da cova. Fumo o cigarro e penso no que aconteceu. Mas não quero pensar. Abano a cabeça para afastar estes pensamentos. Estes pensamentos deixam-me louco e eu não quero ficar louco. Tenho de me concentrar. Tenho de me concentrar noutras coisas. Tenho de pensar noutras merdas. Mando o cigarro para dentro do buraco. Levanto-me. Suspiro. Cuspo para o buraco. Começo a andar à volta do buraco. Acho que estou a tentar arranjar coragem. Não tenho grande escolha. Tenho de acabar o que comecei. Não há escolha. Circulo um pouco mais. Mando o ar fora dos pulmões, com força. Sopro. Sopro nas mãos. Tenho frio. A cara continua a ferver. O corpo continua frio. Páro com as voltas ao buraco que estou a ficar com vertigens. Páro de novo. Olho a escada dentro do buraco e puxo-a para fora. Largo-a no chão. Volto a cuspir para o buraco.
Ponho-me a olhar para ela. Para o corpo inerte dela. Coloco as mãos à cintura e pergunto Porquê, caralho? e sinto que vou chorar, mas não quero chorar. Aperto os olhos com os dedos sujos de terra e entra terra para dentro dos olhos. Não os consigo abrir. Digo umas caralhadas. Tento ir até casa, até à torneira no exterior da casa, mas não consigo encontrá-la de olhos fechados. Penso que já é uma sorte não ter caído com os olhos fechados. Agarro nas mangas do casaco e limpo os olhos. Consigo limpá-los. Pelo menos, um pouco. Já consigo abrir os olhos. Já consigo ver. Movo a cabeça à procura dela. Descubro-a e vou até ela. Baixo-me e pego-lhe por baixo dos braços, pelos sovacos, e puxo-a até ao buraco e mando-a lá para dentro. Largo o corpo no buraco e ele cai até ao fundo, fazendo um som seco. Pam.
Volto à garagem. Levo as escadas de madeira e largo-as lá dentro. Depois pego no balde da cal e levo-o até ao buraco. Despejo a cal sobre o corpo. Depois pego na pá, caída por ali, e começo a encher o buraco, até devolver-lhe a terra toda que tirei. Planto o pé de uma árvore. Regresso à garagem. Levo a pá e o balde com o resto da cal. Agarro num balde vazio e encho-o com água. Rego o pé da árvore.
Largo o balde com água e páro um bocado a olhar a árvore e o buraco tapado. E digo Se soubesse rezar, rezava uma oração. Também podia dizer algumas palavras. Mas não vale a pena. Ninguém me ouve, mesmo. E ainda acrescento Nem sei que árvore é esta.
Agarro no balde e regresso à garagem. Largo o balde e vou até casa. Entro pela cozinha. Abro uma Tapada de Chaves, tinto, de 2016. Encho um copo de vidro. Vou para a rua. Sento-me no alpendre. Bebo um gole de vinho e pouso o copo à minha frente. Acendo um cigarro. Olho as montanhas e suspiro.

[escrito directamente no facebook em 2023/09/12]

E, se For?

Cinco da manhã. Desperto. Não há barulho. Não há luz. Ela não se mexeu. Continua encolhida, de costas, encaixada em mim. Acordei, não sei porquê. Não fui estimulado a isso. Simplesmente abri os olhos e acordei. Acordei abraçado a ela. Virei-me e vi as horas nos números luminosos do rádio-despertador. Bocejo, mas não é de sono. É um bocejo de espertina. Viro-me de novo para ela e sinto-a a respirar. Um respirar calmo. Só lhe vejo um contorno de parte da cara tapada pelo cabelo. O corpo responde ao respirar com suavidade. Ela dorme um sono solto e descansado.
Levanto-me da cama. Espreguiço-me. Vou às escuras até à casa-de-banho. Acendo a luz. Levanto a tampa da sanita e começo a urinar. De repente, um susto. Foda-se! O que é isto? Estou a urinar sangue. Era só o que me faltava. Puta de velhice só me traz problemas.
Puxo o autoclismo. Lavo a cara no lavatório e tento esquecer que urinei sangue. Mas depois começo a pensar que tenho de ir ao centro de saúde. Tenho de marcar uma consulta com o médico de família. Tenho de aproveitar o luxo de ter médico de família. Odeio ir ao médico. Mas tenho de ir. Porra!
Saio da casa-de-banho e não sei para onde ir. Direita ou esquerda? De volta ao quarto ou cozinha? Decido-me pela esquerda e vou até à cozinha. Acendo a luz. Sento-me à mesa e acendo um cigarro. Levanto a tampa do computador. Volto a pensar no sangue na urina. Tremo. Não sei se é de frio (estou nu e descalço) ou de medo.
Tenho o computador aberto à minha frente e fico aqui parado algum tempo, assim, alheado, a olhar para o vazio do desktop, um ambiente cinzento-azulado, meia dúzia de pastas e umas folhas soltas. Mas não sei o que quero. Estou só assim. Parado. A olhar para o ambiente de trabalho, mas não estou a ver nada. Não sei o que hei-de ver. Não sei se quero ver. Abri o computador por abrir. Fumo o cigarro. É a única certeza que tenho, fumo o cigarro.
Penso que, na Ilha de Moçambique, já é dia há muito tempo. Se estivesse lá, e se não apanhasse nenhum temporal daqueles de arrancar telhados e deitar árvores centenárias abaixo, já teria tomado o pequeno-almoço e já teria mandado um mergulho no Índico antes de ir fazer o que quer que estivesse a fazer.
Aqui são cinco e vinte da manhã e ainda é de noite. Já se nota alguma claridade, mas ainda é noite. A janela da esquerda da cozinha, está virada a nascente. Vejo, todos os dias, o sol a aparecer por trás das montanhas. Agora vejo-lhe o contorno, mas ainda está tudo escuro. Mais ou menos. Consigo ver alguma coisa. Talvez haja luar. Felizmente há luar. A peça do Luís Sttau Monteiro. Nunca li a peça. Vi-a numa representação do Leirena numa praça em Porto de Mós. Era de noite e estava frio. E não havia luar. Hoje não sei. Mas também não vou ver. Quero que o luar se foda!
Levanto-me, baixa a tampa do computador, apago a luz da cozinha, saio, faço o corredor à escuras, entro no quarto e deito-me de novo na cama. Olho o rádio-despertador e vejo as horas. Cinco e trinta. Ainda é cedo. Viro-me para ela, encosto-me e abraço-a. Sinto-lhe o corpo a encaixar-se no meu. Mesmo a dormir, ela controla o espaço.
Estou a mijar sangue. Acho que não vou conseguir dormir. Não vou conseguir esquecer. Devia ir mijar outra vez. Só para confirmar. Talvez já não esteja a deitar sangue. Talvez tenha sido uma merda momentânea. Foda-se! Não. Fico deitado. Está quentinho. Ela está quentinha. Que se foda o sangue! Não há-de-ser nada.
E, se for? Olha!…

[escrito directamente no facebook em 2023/09/11]

Já Não Há Mais Estórias

Percorro toda a memória acessível para descobrir alguma estória ainda desconhecida, mas tudo se revela já conhecido. Nada de novo. Nada de velho novo. Recorro a artifícios para manter viva a aparência de que tudo vai bem. Que ainda existem estórias a serem contadas. Mesmo que já sejam sempre as mesmas. Afinal, a minha vida é finita. Ainda está a acontecer, mas é finita. Mas a linha do passado é esta, esta aqui, e vai crescendo à medida que vou vivendo. Não se inventa passado. Coço a cabeça e colecto os piolhos. Esmago-os entre as unhas e ouço os estalitos que fazem no adeus do esmagamento crac-crac-crac. Vou juntado palavras. Vou juntando palavras soltas que vou encontrando por aqui e por ali, nos cantos e recantos sujos da casa. Reciclo frases. Refaço estórias. Pinto-as com novas cores. Finjo. Minto.
Chamo-me assim. Tenho não-sei-quantos-anos. Vivo aqui, comigo, desde algum tempo. A minha condição social é esta, este é o clube do meu coração e já votei nestes partidos todos, embora não sinta afinidades com quase nenhum deles. Gosto de cores, mas também de preto e branco. Como o que há e bebo o mesmo. Trabalho nisto e às vezes naquilo. Ultimamente trabalho menos porque o trabalho escasseia. O futuro engole o presente. Não estamos preparados. Não estou preparado. Foi com surpresa que o vi entrar dentro de casa à minha procura. Não sabia quem ele era nem o que pretendia. Foi com alguma surpresa que ouvi as suas causas. Não reconhecia nada daquilo. Não me reconhecia naquilo. Ele insistia. Eu assustei-me. Foi então que peguei no martelo, tinha estado a arranjar uma portada da janela da sala, e lhe dei com ele na cabeça. De início nada aconteceu. Ele manteve-se como estava, sentado direito no sofá, mesmo que eu não lhe tivesse dado autorização para se sentar. Depois vi um fio de sangue a escorregar-lhe pela face. Depois, o corpo caiu. Caiu no chão. Não fez muito barulho. Quase como um saco de batatas a ser largado com cuidado. A culpa há-de se de muita gente. A minha será, com certeza, a menor de todas. Fui só o instrumento. Não a sentença. Mas faça-se justiça. A vossa justiça.
Enquanto tento encontrar palavras que justifiquem o injustificável, para a morte nunca há justificação (aqui terei de entrar em desacordo com o autor, mas isso será, talvez, assunto de outra conversa e, talvez, num noutro local), palavras essas cada vez mais perdidas, a linguagem tende a morrer e a ser substituída por emojis, sendo o do cocó o mais bem sucedido, perco a comunicação e sobram os gargarejos.
Como é que acaba a estória? Como acabam sempre todas as estórias: no final todos morremos. Uns assassinados, outros condenados, outros de outras formas diversas. Mas acabamos sempre mortos.
(somente quando as estórias começam com Era uma Vez, é que existe a autorização para que as estórias terminarem E Foram Felizes para Sempre, deixando no ar outras estórias inseridas no Sempre, antes de, finalmente no fim, acabarem por morrer também, como todos os outros).

[escrito directamente no facebook em 2023/08/26]

Não Tangível

Não são rosas, senhor, são copos de vinho tinto, espesso e amargo, que despejo goela abaixo porque não posso deixar de o fazer. Não são rosas que trago no regaço. É a azia deste vinho carrascão que ingiro para matar a fome e as dores das fomes. São muitas, as fomes. Tantas quantas o mundo produz.
Caio. Levanto-me. Levanto-me com dificuldade. Levanto-me antes que passe um carro e me leve. Levanto-me com dificuldade. Não sei para que lado subir. Se para cima, se para baixo. Onde é o alto? Onde está a cabeça? A minha cabeça?
Vomito. Vomito-me vermelho vivo. Vomito sangue? Talvez de Cristo. Um Cristo azedo. Cheira mal. Cheiro mal.
Arrasto-me aos encontrões com a parede. Bato mais forte com a cabeça. Ela cai para a frente e bato com força. Quebro os óculos. E o nariz. Vejo tudo vermelho. Tenho sangue nos olhos. Os vidros dos óculos ferem-me. Onde é que me ferem? Onde estou ferido? É na alma. Na porra da alma. O único órgão não tangível que se quebra, que se fere, que se destrói. Que se perde no tempo. Que se perde no espaço. Que se perde nos corações dos outros. Nas mãos dos outros. No nojo dos outros.
Sento-me. Agarro-me. Tento não ser levado no giro do carrossel. Preciso de me concentrar. Mas a Terra gira, eu giro, tudo gira, o mundo é um carrossel a girar sem parar e regressa o enjoo. Volto a vomitar. Ou tento. Sai uma espuma. Uma espuma azeda. O corpo tem convulsões. Estalo como um chicote. Danço uma dança de morte. O corpo é elástico. De borracha. Estica-se até ao chão. De novo. E é melhor ficar por aqui. Não adianta tentar levantar-me se volto a cair. Não adianta. Nada adianta nada.
Descubro o céu. Um céu azul pincelado de branco num desfoque de falta de óculos. Não consigo ver bem. Vejo o que é possível. Formas sem linhas claras. E depois, uma cara. É uma cara. Uma cara sobre mim. Uma cara sobre a minha cara. Diz qualquer coisa. Não percebo. Estou sem óculos. Não consigo perceber o que a cara diz. A boca mexe-se. Eu pergunto És tu?, mas não tenho a certeza se alguém ouviu. Não tenho a certeza se falei. Não tenho a certeza se me fiz ouvir. Cá dentro, dentro de mim, está focado. E pergunto com clareza És tu? Mas não ouço resposta. Não sei. Cá fora tudo está desfocado e o som fanhoso. Um emaranhado de sons, de ruídos. Um zumbido que me fura os tímpanos. Uma orgia sonora. Uma orquestra de instrumentos alienígenas. Não percebo o som. Cacofónico.
O céu azul desapareceu. Há um sol. Dois sóis. Um céu branco. Uma cara que entra e sai da minha visão. Sinto uma picada no braço. Espetei-me nalguma coisa. Tenho medo de me ter espetado num prego. Um prego enferrujado. Tenho a vacina do Tétano em dia. Sinto-me preso. Estou preso? Ouço um apito. Um apito intermitente. O que é que está a acontecer? Onde é que estou? Quero vomitar. Quero vomitar esta dor que me aperta o peito. Quero um cigarro. Quero não estar aqui. Quero adormecer. Quero dormir.

[escrito directamente no facebook em 2023/08/14]

No Cenário Habitual

Entro no bar, e não queria entrar. Entro no bar e dirijo-me ao balcão. Encosto-me, como todo o meu peso, ao balcão. Os cotovelos fincados no mármore do balcão. A barriga a coçar o friso. Olho para o lado e vejo um banco. Ainda é um bar com bancos ao balcão. Alço o rabo e sento-me em cima do banco. Levo as mãos à cara e massajo-a. Esfrego os olhos até doer. Depois enfio os dedos das mãos nos cabelos e penteio-me para trás. Tenho o cabelo molhado da transpiração. Tiro os dedos e sinto-lhes alguns cabelos colados. Anda-me a cair o cabelo. Já cheguei à idade em que tudo me cai. Já estou no ponto sem retorno.
O tipo planta-se à minha frente à espera da minha ordem. Tento recuperar o fôlego, demoro um pouco a recompor-me, e, por fim, lá peço Um copo de vinho tinto. Preferência? O vinho da casa.
Volto a passar os dedos pelos cabelos, mas não sei porque fiz isso. Nem faz parte dos meus hábitos fazê-lo.
Está a ser difícil respirar, mas sinto que também estou um pouco entupido. Levanto um pouco o rabo do banco e tiro um lenço de papel do bolso de trás das calças. Assoo-me ruidosamente. Sinto os olhares do bar sobre mim. Viro-me no banco e encaro, arrogante, os olhares alheiros. Os olhos fogem do confronto. Não estavam à espera da minha investida. Medricas.
Viro-me de novo para a frente e já cá tenho o copo de vinho. Ao lado uma pequena taça com amendoins torrados salgados. Agarro no copo de vinho e viro-o de uma vez. Levanto a mão na direcção do tipo, e ele percebe. Pego num amendoim e coloco-o na boca. Gosto de sentir o sal. Como o resto dos amendoins sofregamente. O tipo coloca-me outro copo à frente. Bebo um golo. Sou mais comedido. Estava com sede. Agora faço sala. Beberico. Mas beberico a grande velocidade.
Olho em frente e percebo que o bar não tem espelho atrás do balcão. Não vejo o que se passa nas minhas costas. Acho que é a primeira vez que estou a um balcão que não tem espelho. Olho para as garrafas penduradas de cabeça para baixo, tento ler os rótulos, mas não consigo. Ainda inclino um pouco a cabeça para tentar perceber as letras, mas é uma tentativa vã. Acabo com o segundo copo de vinho. Levo os dedos à pequena taça dos amendoins, mas está vazia. Suspiro.
Levanto o copo vazio para o tipo. Salto do banco. Procuro a porta da casa-de-banho e vou até lá. Entro e sinto o cheiro azedo a urina. Urino. Volto ao balcão. Já cá tenho outro copo. Bebo um gole. Viro-me para trás. Viro-me para as mesas. Olho para quem lá está, mas os olhares fogem do confronto. Acho que têm medo de mim.
Viro-me de novo para a frente. Despejo o copo de uma vez. Sinto-me tonto. Está tudo a mexer-se à minha volta…
Acho que vomito…
Acho que bato em alguém…
Acho que bebo mais uns copos…
Acho que bato com a cabeça no balcão…
Acho que sinto o sabor metálico do sangue na boca…
Talvez esteja adormecido…
Talvez seja um sonho…
Tenho sangue na mão, acho…
Tenho uma garrafa de vinho nas mãos…
Acho que está vazia…
Acho que está partida…
Acho que a espeto em alguém…
Acho que ouço gritos…
Acho que ouço uma sirene…
Talvez esteja a beber mais uns copos de vinho…
Talvez esteja a vomitar outra vez…
Talvez esteja no sono…
Talvez esteja mesmo a dormir…

[escrito directamente no facebook em 2023/06/18]

Duas Mulheres e um Tiro de Revólver

Por mais que julguemos que já vimos de tudo, que estamos habituados a tudo, há coisas que quando acontecem nos deixam surpresos. Se não assistíssemos, não acreditaríamos. E ás vezes são coisas tão extraordinárias que nem no cinema se vêm coisas assim.
Então, eram seis da tarde. Tinha ido até à aldeia e fui ao café Central beber umas cervejas. Havia tremoços e sentei-me na esplanada a beber cerveja e a trincar tremoços. De vez em quando, fumava um cigarro. Quando a cerveja acabava, ia lá dentro pedir outra. Entretanto iam chegam outras pessoas da aldeia ao café. Quase só homens. Quase todos na cerveja. Alguns vinham para a rua. Por vezes dirigiam-me a palavra. Mas não sou muito sociável. Lá vou respondendo, um ou outro comentário sobre a pré-época do Benfica, mas nada mais que isso.
Eu tinha voltado novamente ao interior quando aconteceu.
À entrada do café, uma mulher, uma mulher de meia-idade, bonita, cabelo comprido, solto, a olhar para mim. Ou assim me pareceu. Ela avançou em direcção a mim. Eu fiquei parado, à espera. Não a conhecia de lado nenhum. Nem me parecia lá da aldeia. Engoli em seco. Nunca sabemos quem vem à nossa procura nem porquê. As surpresas quase nunca são boas. E ali estava eu, parado no meio do café, com uma cerveja na mão, um cigarro por acender ao canto da boca e a engolir em seco, com uma mulher a dirigir-se a mim. Quando eu me preparava para a receber, ela passou por mim, eu virei-me para ver onde se dirigia, e ela parou logo a seguir. Levantou o braço e, com a mão, tocou no ombro de um tipo que estava encostado ao balcão, a conversar com outro, enquanto bebiam uns bagaços. Ele virou-se e mostrou surpresa ao ver a mulher. Talvez bem mais surpresa que eu. Eu conhecia o tipo da aldeia. Já tinha visto alguns jogos da bola no café sentado na mesma mesa que ele. Já tínhamos partilhado um prato de moelas. Ele perguntou à mulher O que é que estás aqui a fazer? e a mulher disse-lhe Isso pergunto-te eu!
Ele tentou agarrar o braço da mulher, mas ela desviou-se, afastou-se um pouco dele, levou a mão à mala que tinha a tiracolo, e puxou de um revólver. Apontou-lhe o revólver. Ele levantou os braços. Estava com medo. Ele e todos os gajos do café. Caiu o silêncio na sala. Só se ouvia mais um Alerta CM na televisão.
Ele disse-lhe Não é o que pensas. Ela respondeu Nunca é!
Ele tentou aproximar-se dela e do revólver, tentou tirar-lhe o revólver das mãos, mas ela disparou à queima-roupa e acertou no tipo, acertou-lhe na barriga. Ele caiu para a frente. Ela ficou parada a olhar para ela. O sangue espalhava-se pelo chão. Ele rastejava a tentar agarrá-la. O dono do café telefonou para a guarda. A mulher não se mexia. O tipo estrebuchava no chão, agonizante. E foi assim durante algum tempo, muito tempo, talvez.
Depois entrou uma mulher a gritar no interior do café. As pessoas pareceram despertar daquele torpor. A mulher com o revólver, afastou-se um pouco do tipo, mas não se foi embora. A outra mulher lançou-se sobre o tipo, abraçou-o e começou a chorar, enquanto tentava estancar o sangue que lhe saía da barriga.
O tempo pareceu ter parado lá dentro do café. Ninguém se mexia. As acções estavam no quadro central. A mulher baixou o braço, mas não largou o revólver. A outra mulher, ajoelhada no chão, ergueu o tipo a sangrar para o seu colo. Pensei ter visto mais uma Pietá.
Da rua chegou o som das sirenes da guarda. Entraram dois guardas no café. Um deles tirou o revólver à mulher e algemou-a. Chamaram o INEM.
Eu resolvi ir embora para a rua. Precisava de fumar um cigarro. O guarda berrou Ninguém sai! E eu não saí. Sentei-me a uma mesa. Alguém virou-se para mim e disse O tipo tinha duas famílias. Uma aqui e outra lá para Leiria. Estas merdas nunca dão certo.
Eu pensei que há tipos com coragem para viverem duas vidas. Depois também pensei que há mulheres que podem não gostar disso. Depois ainda pensei Ainda bem que vivo sozinho. Mas terminei a pensar que era uma merda, isso de estar sozinho.
Ainda ficámos ali até à noite. Acabei por jantar um bitoque no café que fechou mais tarde nesse dia. A mulher foi presa. Tem dois filhos dele. A outra deu entrada na ala psiquiátrica do hospital de Leiria. Também tem dois filhos. Ele ainda está vivo. Ligado às máquinas, mas vivo.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/13]

O Algoritmo Muda a Realidade

Mudo de ideias sem grandes dramas. Há coisas a que sou apegado. Não às ideias. As ideias vão e vêm. Às vezes servem-me de guia. Mas se percebo que estão erradas, ou eu estou enganado em relação a elas, não tenho problemas em largá-las. Mas não renego ideias passadas. Tenho-as como momentos que me moldaram.
Conheci-o num bar em Leiria quando eu ainda frequentava os bares da cidade. Naquela altura conhecia toda a gente e quando havia alguém novo no circuito da noite, havia curiosidade em saber quem eram. Foi assim que o conheci. Entre copos de imperial e amendoins torrados. Uma conversa que começou com música, passou pelo cinema, por alguns livros, e acabou na política. Naquele tempo tudo levava à política. Não à política partidária, naqueles tempos não tínhamos pachorra para os partidos. Agora também não, mas na altura ainda menos. Mas sabíamos que tudo era política. Passar da literatura à política era um salto natural. Foi assim que soube que era do partido. Discutimos bastante. Naquela altura as discussões eram muito intensas. Tínhamos o sangue quente. Mas não passavam de discussões. Ninguém se matava. Continuávamos a dar na cerveja e a penicar amendoins. Eu disse-lhe que não acreditava no inacreditável. As minhas ideias não tinham pretensões científicas, mas sociais. Ele era todo científico. E depois percebi uma coisa nele, quando a realidade não se encaixava nas suas ideias, o que tinha de mudar era a realidade, não as suas ideias. Aquela discussão acabou sem terminar. A meio, que já era no fim, a noite já ia longa e o bar ia fechar, disse-lhe que não valia a pena discutir com alguém que nunca mudaria de ideias por mais que lhe demonstrassem que as ideias estavam erradas porque para ele as suas ideias eram uma verdade absoluta. Disse-lhe que não acreditava em verdades absolutas. Saímos do bar e fomos para a discoteca dançar até às seis da manhã.
Durante algumas semanas, talvez meses, ele tornou-se uma peça da noite de Leiria. Estava sempre presente. Bebíamos uns copos. Voltávamos a discutir. Conversas sobre tudo. Voltámos à política, mas nunca nada tão aceso como a primeira discussão no dia em que nos conhecemos. Já o conhecia e sabia onde parar.
E aí, um dia, ele deixou de aparecer.
Passaram-se meses. Passaram-se anos. Nunca mais pensei nele. Foi mais uma personagem que tão depressa entrou nas nossas vidas como saiu. Naqueles dias acontecia muito. Eu estava sempre naqueles bares. Conhecia toda a gente. E quando não conhecia, passava a conhecer. Alguns estavam de passagem. Outros ficavam durante algum tempo. Outros assentaram mesmo arraiais. Alguns ainda estão hoje em Leiria.
E então, outra vez, um dia, na verdade, uma noite, ele voltou a aparecer. Estava ao balcão, no meu balcão, no meu lugar ao balcão, a conversar com um tipo que eu conhecia de vista, mas com quem não tinha qualquer relação. Olá!, Boa-noite!, Tudo bem?, não mais que isto. Fui cumprimentá-lo. Fizemos uma pequena festa. Abraços. Sorrisos. Umas palavras de ocasião. Depois eu fui para outro lado do balcão, tinha sido expulso do meu lugar, e ele voltou à conversa com o outro tipo.
A noite entrou por ela fora, o bar encheu, eu estava na conversa com alguém quando umas vozes se começaram a sobrepor. Todos parámos de falar, todos nos calámos e olhámos para onde vinha a discussão. Era ele. Ele e o outro tipo. Numa discussão aos berros. Ouvi qualquer coisa de cariz político, mas não percebi grande coisa. De repente, uma pistola numa mão, um silêncio total, um silêncio tão grande que se ouvia o coração dos tipos a bombear sangue pela aorta para os corpos super-excitados. Ninguém falava. Só uma pistola ameaçadora na mão de um deles. Alguém disse Então, pá? Deixa-te disso! E logo de seguida o som cavo de um tiro à queima-roupa no interior de uma divisão. Por momentos fiquei surdo, com os ouvidos a apitar, a vista turvou-se, parecia que tinha passado da realidade ao sonho e voltado à realidade à velocidade da luz e vi-o, a ele, de pistola na mão e o outro tipo caído ao fundo do balcão e uns salpicos de sangue, que me remeteram para o Pollock, espalhados pela parede, pelo balcão, pelo chão. Vi-lhe o horror na cara. O medo. Deve ter percebido o que tinha feito. Um momento de lucidez depois da loucura. Porque raio andava o tipo armado? Isto é Leiria. Não acontece nada em Leiria. Ninguém precisa de uma arma em Leiria se não for para fazer um assalto, e ninguém faz assaltos em Leiria. Bom, só os de colarinho branco.
O tipo voltou a sentar-se ao balcão. Largou a pistola lá em cima. Alguém afastou a pistola para o fundo do balcão, para ao pé de mim. E esperou que chegasse a polícia.
Quando a polícia chegou, entregou-se e foi levado para a esquadra. Depois chegou o INEM e a polícia forense.
Eu fui-me embora. Numa mais o vi. Nunca o fui visitar à cadeia. Não éramos propriamente amigos. Acho que ainda deve estar preso, se não morreu na prisão.
Eu continuo a mudar de ideias. Cada vez mais.
Hoje ouvi alguém dizer que os algoritmos mudavam a realidade a seu bel-prazer porque a realidade eram os algoritmos. Foi aí que voltei a lembrar-me dele. Quando a realidade não se encaixava nas suas ideias, o que tinha de mudar era a realidade, não as suas ideias.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/10]

A Casa-de-Banho a Meio do Caminho

A casa-de-banho ficava a meio do caminho. De lá até à praia, ainda era um esticão. Era raro alguém ir da praia à casa-de-banho. Demasiado longe, demasiado calor, debaixo de um sol abrasador e sem uma única sombra de que se pudesse dizer Porra! Esta é uma boa sombra! Normalmente as pessoas limitavam-se a urinar no mar. Bastava olhar para as velhas a baixarem-se na pequena ondulação para perceber que estavam a urinar. Era um mau princípio, claro, mas ninguém dizia nada, ninguém discutia com ninguém, toda a gente fingia que não via, havia algumas censuras em surdina, sim, mas ninguém se atrevia a dizer, alto, o que quer que fosse. É aquilo que se dizia ser, uma questão cultural. Tínhamos sido ensinados assim, desde o tempo em que não havia casas-de-banho públicas junto às praias e as casas-de-banho dos estabelecimentos comerciais eram só para clientes.
Eu utilizava a casa-de-banho no regresso. Depois do dia inteiro na praia, na hora do regresso parava na casa-de-banho, para urinar, lavar as mãos, a cara, e, por vezes, encharcar a cabeça debaixo da torneira do lavatório.
Era uma casa-de-banho precária. Uma pequena estrutura rectângular com três portas, uma para mulheres, outra para homens e uma terceira para pessoas em cadeira-de-rodas. Não havia janelas, só as portas. Às vezes, ao final do dia, em dias de muito calor, as casas-de-banho exalavam um cheiro insuportável a urina. Um cheiro azedo. Não era sempre, mas era muitas vezes. Não sei quantas vezes por dia a casa-de-banho era limpa. Não tinha aqueles papéis do horário das limpezas assinado pelo responsável como nas casas-de-banho dos centros-comerciais. Mas nunca estavam muito sujas. Nunca deixei de as usar por uma questão de falta de limpeza.
Naquele dia, um dia igual aos outros dias, um dia sem nenhuma história até ao momento, fui à casa-de-banho no meu caminho de regresso a casa. Estava ainda sem a t-shirt vestida porque ainda estava muito calor e ali era ainda, tecnicamente, zona de praia. Entrei na casa-de-banho com o intuito de urinar e molhar-me, lavar as mãos e a cara e molhar a cabeça para aguentar melhor aquela temperatura até fazer o resto do trajecto até ao cais, onde iria apanhar o ferry de regresso, e reparei, pelo canto do olho, em alguém que estava agachado, num canto da casa-de-banho, debruçado sobre o que me parecia ser uma mochila, mas nem virei a cabeça nem o olhar para ver melhor, bastou perceber, pelo canto do olho, que estava ali alguém, mas nem me interessou quem era ou o que estava a fazer. Dirigi-me logo ao urinol e comecei a urinar o equivalente a quase dez horas de praia sem ter urinado uma única vez, estava mesmo numa fase de alívio por estar a urinar, quando tive uma sensação, senti alguém atrás de mim, ainda tentei virar a cabeça sem virar o corpo, mas nem fui a tempo, ouvi um estalito grave e senti algo a perfurar-me a cabeça, percebi logo depois que tinha sido um tiro, que eu tinha sido atingido com um tiro de revólver na cabeça e pensei Estou morto!, tudo antes de cair ao chão, desfeito, o meu sangue a pintar a parede em frente, eu a cair pesado no chão da casa-de-banho, sem respirar, com o coração parado e a minha vida interrompida.
O homem, tinha sido um homem que me tinha morto, tinha-se levantado da mochila com um revólver na mão e disparou sobre mim à queima-roupa, e antes ainda de eu cair, ele já estava a agarrar na mochila, numa caçadeira de canos serrados e saído pela porta da casa-de-banho dos homens, entrado na das mulheres, disparado também dois tiros do revólver e ter morto duas mulheres que lá estavam, e de ter saído pela porta da casa-de-banho das mulheres, ter entrado na dos deficientes, onde não estava ninguém, eu também nunca lá tinha visto ninguém, e depois ainda o percebi sair da casa-de-banho e rumar à praia onde ainda matou mais seis turistas, duas mulheres e quatro homens, nenhum deles criança, naqueles dias não havia muitas crianças na praia, ainda não era o tempo de férias das famílias, até ser dominado pelos nadadores-salvadores da concessão e ser entregue aos bombeiros de plantão, o mais próximo de uma autoridade que havia ali naquela ilha.
Nove pessoas tinham sido mortas na ilha naquele final de dia. Eu fui o primeiro. Sim, sei o que estão a pensar. Então, estou morto e estou a contar a história? Pois, eu também não entendo muito bem. Não sei o que é que se passa, mas a verdade é que já morri e ainda estou aqui a contar a história. E é o que faço. Pelo menos, enquanto me for possível.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/26]

Espero que Tragas Sushi

Já pus a mesa. Mesa posta para dois. Deixei uma garrafa de vinho tinto aberta para respirar. Deixei ligada a luz do fogão para a cozinha não cair na obscuridade. Vim para a sala.
Sentei-me no sofá e liguei a televisão. Está na SIC Notícias e a notícia é sobre a lentidão no processo Tutti Frutti por falta de meios, diz a Procuradora Geral da República. Mas a notícia vai-se extinguindo no meu desinteresse. Deixo de ouvir as notícias mesmo que os meus olhos continuem cravados nas imagens que se vão sucedendo.
Acendo um cigarro e começo a ficar nervoso. Ela nunca mais chega. Já devia cá estar.
Ela ficou de trazer jantar. O que houver, disse eu. Uma pizza ou frango assado. Talvez uma sandes de leitão, acrescentei. Ela acenou que sim, com a cabeça. Não sabia a que horas conseguiria chegar, mas não viria tarde. Já é tarde. Acho eu. Já passou da hora do jantar, por isso já é tarde. Ela ainda não chegou.
Acabo o cigarro. Procuro o cinzeiro. Não vejo nenhum. A cinza está caída no chão. Levanto-me e vou à cozinha. Apago o cigarro num fio de água na torneira do lava-loiça. Rasgo uma folha do rolo de cozinha e apanho a cinza caída no chão da sala.
Se calhar vai trazer sushi e está à espera que o combinado esteja pronto. Aquilo é feito na hora. Pode demorar algum tempo. É isso.
Regresso à cozinha e deito o papel com a cinza no caixote do lixo. Olho para a mesa posta e troco os talheres por pauzinhos e coloco o frasco de molho de soja na mesa. Despejo um pouco de vinho no copo e bebo-o de um gole.
Volto à sala. Sento-me no sofá. E se ela não trouxer sushi? E se não trouxer nada? Pode ter-se esquecido. De mim ou do jantar. Pode ainda estar a trabalhar e quando sair já não haver nada para trazer. Só as bifanas das rulotes.
Olho para o telemóvel e telefono-lhe. Está desligado. Sinto-me irritado. Vou ao quarto das visitas. Tenho lá um saco de areia para boxe pendurado no tecto. Exercito uns murros, mesmo sem luvas. Entusiasmo-me e repito os golpes. Bato com força. Cada vez com mais força. Liberto a irritação. Descubro que já tenho as nozes dos dedos em sangue. Oh, que merda!
Vou até à janela e espreito lá para fora. É de noite e está escuro. Não vejo nada.
Na casa-de-banho ponho Betadine nas nozes dos dedos.
E se ela está a jantar pela cidade? A jantar com um amigo? Também posso ter dito que ia jantar fora? Que ia jantar com amigos? Desato-me a rir. Eu, a jantar fora, com amigos? E dou uma gargalhada bem sonora.
Volto à cozinha. Encho outro copo de vinho e bebo-o de um gole, outra vez. Abro o frigorífico e agarro numa mão-cheia de azeitonas. Vou à caixa do pão e agarro numa fatia de broa. Como azeitonas e broa. Volto a encher o copo com vinho. Agora bebo mais devagar. Já não me apetece frango assado. Nem pizza. Ainda aparece aí com uma pizza com ananás. Cuspo os caroços das azeitonas para o lava-loiça, mas não acerto e vejo os caroços a saltitar pela cozinha.
Eu já comia era mesmo uma sopa de feijão. Depois penso duas vezes e decido Não, ela vai trazer sushi. Não há outra hipótese.
Já comi as azeitonas e a broa. Despejo o resto do copo de vinho. E digo bem alto Aparece, caralho! Estou com fome!
Ouço um carro a chegar ao fundo, na estrada, e a passar pelo portão. Sinto o carro a subir a alameda, a passar pela casa e ir estacionar debaixo do telheiro.
Vou à despensa. Procuro entre as prateleiras. Encontro a caixa das ferramentas. Abro-a. Agarro no martelo. E digo Espero que tragas sushi.

[escrito directamente no facebook em 2023/06/02]