Os dias repetem-se. Leio nas minhas notas, uns guardanapos de papel roubados nalgum café e guardados numa caixa de sapatos por ordem de criação, que o ano passado, há precisamente um ano, depois de uns dias de forte calor estival, finalmente a chuva.
Não que me preocupe muito, a chuva. Mas instala-se a ideia que isto anda tudo trocado, mas na verdade é que tem sido assim, só que mais intensamente. O calor é maior e a chuva é mais intensa.
É do alpendre, sentado na minha cadeira de sempre, a sofrer com alguns salpicos de chuva, a fumar um cigarro, que vejo os pingos da chuva assentar a terra do quintal que ultimamente era já só pó.
Apago o cigarro e entro em casa.
A meio da cozinha páro e olho para o tecto. E digo Está mais escuro. As horas estão a escurecer. Cada novo dia, o dia morre mais cedo. Já não há mais filmes do Rohmer. Pelo menos, não daqueles que eu gosto mais. Haverá dos outros, que também não são maus. Mas não são aqueles.
Saio da cozinha e desligo a luz. Faço o corredor quase às escuras e entro na sala. Acendo uma pequena luz indireta de um candeeiro de canto que não ilumina a sala, mas permite-me ver melhor o espaço, onde estou e onde fazer.
Sento-me no sofá. Agarro no comando da televisão, mas não tenho tempo de a ligar. Ouço uma voz sumida. Alguém que diz alguma coisa. Levanto-me do sofá e penso que estou sozinho em casa. Olho em volta. Vou ao corredor. À cozinha. À despensa. Volto ao corredor. Vou à casa-de-banho. A um quarto. Ao meu quarto. Está alguém deitado na minha cama. Aproximo-me. Estou com receio. Chego-me à cama e vejo o corpo de uma mulher deitada sobre a cama. O corpo está ferido na barriga. Deita sangue. Muito sangue. Deita sangue que empapa o meu edredão. A mulher está de olhos aberto a olhar para mim. Eu congelo. Não me consigo mexer. Não consigo pensar. Não sei o que fazer. Não sei o que dizer. Depois lá me sai Quem és tu? e ela diz Eu sou tu.
Que caralho de resposta é esta? penso para mim. A ela pergunto-lhe Como é que és eu? e ela responde Sou tu noutra dimensão, e eu pergunto E porque és uma mulher? e ela pergunta-me E porque és tu um homem? ao qual respondo uma obviedade Porque eu sou eu.
Aquela conversa parecia um diálogo de tontos. E para acentuar isso ela respondeu E eu também sou eu. Era só o que me faltava, não é? Uma tipa impertinente com a mania que sou eu. Teria tomado alguma coisa? Eu! Eu teria tomado alguma coisa que me tivesse feito imaginar estas merdas?
Mas afinal, o que é que aconteceu? pergunto.
Ela responde O mundo. O mundo está doente e as pessoas são o vírus que está a matar o mundo. Cabe-nos a nós, porque somos nós, salvá-lo. Eu já não posso. Restas tu. Tem cuidado.
Esfrego os olhos, volto a olhar e a cama está vazia. O edredão não está com sangue. Eu estou sozinho em casa. Eu sou eu e sou um homem. Não me importava de ser mulher.
De repente penso em Israel e na Palestina, não sei bem porquê.
[escrito directamente no facebook em 2023/10/13]