Penso que Passaram Dois Dias, mas Já Não Sei Nada

Há dois dias que estou aqui sentado, neste sofá. Há dois dias que não saio daqui. Há dois dias que não como, nem bebo, nem vou à casa-de-banho. Há dois dias que só fumo. E os cigarros estão a acabar. Aqui ao pé de mim. Se me conseguir levantar e ir até àquele armário que está ali à frente, tenho lá um volume. Mas não sei se consigo.
Há dois dias que ela saiu pela porta da rua. Aquela que ainda se consegue ver daqui, de esguelha. Saiu porque se fartou, disse ela. Fartou-se que eu lhe chamasse a atenção por deixar as cuecas sujas por todo o lado. Gaita, tinha um cesto para isso. Todos os dias deixava as cuecas pelo chão. Todos os dias. E era eu que tinha de as apanhar. Só lhe dizia para as colocar no cesto. Mais nada. Mas foi uma desculpa. Na verdade a razão era eu. Na verdade, ao fim deste tempo, ela já estava farta de nós. Não tínhamos nada em comum, nada a ver um com o outro. Para além das bebedeiras que apanhávamos, claro. Aliás, foi aí que nos encontrámos. No balcão de um bar. A beber. Sozinhos. Encontrados na solidão do álcool. Foi o que nos ligou. Nem a cama foi tão próxima.
Há dois dias que ela se foi embora e eu aqui estou. Não sei se é de dia ou de noite porque a janela está fechada e não tenho vontade de a abrir. Penso que o relógio ali de frente, na parede, já deu quatro voltas. É por isso que eu acho que já passaram dois dias. Mas não sei bem. Podem ter passado mais. Ou menos.
Acendo mais um cigarro, o que me mantém acordado. Penso que desde que ela se foi embora ainda não bebi nada. Nem água, nem álcool, nada. Penso que, eventualmente, vou ter de me levantar daqui. Mas quando penso em beber ou comer qualquer coisa, sinto-me enjoado e depressa me sinto confortável aqui sentado, com a luz do candeeiro acesa e a televisão desligada e essa ideia constante que ela virá cá buscar as cuecas e vamos, então, poder falar. E se calhar, voltar ao bar. Ao balcão. Beber um copo. Fumar um cigarro. Conversar. Desejá-la de novo, nem que seja por momentos…
Há três dias que estou aqui sentado, neste sofá. Há três dias que não saio daqui. Há três dias que não como, nem bebo, nem vou à casa-de-banho. Já não tenho cigarros e não me consigo levantar para os ir buscar. Há três dias que alguém se foi embora, mas já não sei quem. Sei que algo aconteceu. Mas já não me lembro o quê. Já não sei muito bem do que é que aconteceu e o que é que estou aqui a fazer. Já não sei nada.

[escrito directamente no facebook em 2017/09/19]