Depois

Depois do divórcio, depois de ter saído de casa e porque estava desempregado (o divórcio tinha sido também uma consequência do ter sido despedido), passei um período bastante complicado.
Durante alguns dias andei a dormir na rua. Não custou muito, era Verão. Depois consegui trabalho por uns tempos no McDonalds e arrendei um quarto. Um quarto numas águas-furtadas que não tinha janela, tinha uma clarabóia por onde eu podia enfiar a cabeça e ver os telhados das casas adjacentes. Estas águas-furtadas tinha vários quartos, e estavam todos alugados a homens. A senhoria, que vivia no apartamento por baixo, deixava-nos alguma privacidade, mas não nos deixava levar para lá mulheres. Era a única objecção. Não queria lá mulheres, fossem elas as nossas mães ou irmãs, companhias ou meras amigas. Não há amizade entre homens e mulheres, dizia, só interesse.
Havia uma pequena cozinha que podíamos utilizar e que ninguém utilizava. Normalmente quase toda a gente comia frango assado e pizza ou ia à carrinha da Igreja Evangélica que passava uma vez por semana na avenida lá perto de casa.
Também havia uma casa-de-banho que tinha de servir para toda a gente e que, de manhã, em certos dias, eu utilizava ainda de noite para evitar o congestionamento matinal. Toda a gente queria a casa-de-banho à mesma hora. Eu evitava isso.
Cheguei a dever dois e três meses de renda do quarto, mas a senhoria era compreensiva. Sabia que, mais dia menos dia haveríamos de encontrar trabalho e aí regularizávamos as contas. E eu assim fazia. Quando tinha trabalho, regularizava as contas da casa. Mesmo que me obrigasse a passar fome. Mas precisava de um quarto. O Inverno na rua devia ser terrível e não queria passar pela prova. Já me chegara aqueles dias iniciais, no Verão, quando a minha mulher, a minha ex-mulher, me pediu para sair de casa, da vida dela, da vida de toda a gente que conhecíamos que os amigos eram dos dois e passaram a ser só dela. E eu saí.
Depois do McDonalds passei por vários outros sítios. Sítios assim, de salário curto. Já fui jardineiro. Andei a varrer as ruas da cidade. Também andei nos camiões de recolha do lixo, mas não aguentei por muito tempo aquele cheiro. Não sou um tipo esquisito, mas aquele cheiro deixava-me com umas terríveis dores-de-cabeça que me levaram várias vezes ao médico de família no Centro de Saúde. Também andei ao dia, a dar serventia a pedreiros, mas não aguentei. A minha bronquite limitava-me os esforços físicos. Ao fim de uma semana desisti.
No McDonalds tive sempre como colegas miúdos do Politécnico. Alguns também do Secundário. Fui uma espécie de pai deles todos. No fim do dia eles iam para as suas casas aquecidas, ter com os pais, com os namorados, para casas partilhadas, e eu regressava ao meu quarto, abria a clarabóia e fumava um cigarro com a cabeça de fora. Por vezes eles olhavam para mim e tinham medo de se verem a eles próprios. Eu era licenciado. Pré-Bolonha. Cinco anos de Licenciatura. E estava ali, com eles.
Após alguns trabalhos temporários, quase sempre para poder comer e pagar o quarto, estou, finalmente, há cerca de seis meses, no mesmo trabalho, numa quinta de eventos onde me dedico à limpeza das pequenas casas para alugar, uma espécie de bangalós. Faço as limpezas maiores. Aspiro. Lavo. Limpo o pó. Uma miúda passa depois de mim e faz as camas de lavado, muda as toalhas, enche a fruteira, uma garrafa de água no pequeno frigorífico e deixa tudo preparado para receber os hóspedes seguintes. Também faço pequenos arranjos. Um parafuso solto. Um vaso tombado que se partiu. Um estrado que se quebrou.
Como sou a primeira pessoa a passar pelas casas depois da partida dos hóspedes, para recolher a roupa suja e a levar à lavandaria, também deparo com alguns restos que ficam nas casas. Alguns esquecidos. Outros perdidos. Outros ainda simplesmente para serem deitados fora. Se bem que a quinta tenha regras bem definidas para tudo o que seja encontrado nas casas, tudo é guardado numa espécie de Perdidos & Achados durante um ano, ao fim do qual as peças são distribuídas pelos empregados, se as quiserem, senão, são oferecidos a centros de dia da zona, eu costumo ficar com as comidas e bebidas. Primeiro eram os chocolates e os pacotes de batatas fritas ainda por encetar. Mas depressa comecei a guardar as garrafas de vinho, mesmo que só tivesse um pequeno resto. Os restos de comida. Se no início eram só as coisas que me parecessem intactas, agora já levava tudo. Restos de hambúrgueres. De frango assado. Fatias de pizza. Queijos. Alguns com bolor mas que bastava raspar e ficavam bons. Rodelas de enchidos perdidas no pequeno frigorífico. Garrafas de cerveja. Normalmente minis. Aprendi a aproveitar tudo. A dar valor a coisas insignificantes. A nunca desperdiçar nada.
A minha vida nunca mais se endireitou, no sentido de retomar um trajecto que já tive e que parecia levar-me para algum lado. Que não levou. Mas nestes últimos tempos pareço ter ganho algumas raízes aqui onde já estou há seis meses. Ganho o salário mínimo, o que não me dá para economizar ou sonhar com o futuro nem ter grandes ideias sobre o que hei-de fazer à minha vida. Mas vou tendo que comer. Deito-me numa cama quente e seca. Consigo tomar banho de água quente todos os dias. Lavo o cabelo duas vezes por semana. Sinto falta de uma mulher. Não uma mulher para ir para a cama. Às vezes vou ali ao Marachão e dou dez euros a uma rapariga. Mas uma mulher com quem partilhar o dia-a-dia. Com quem falar. Perguntar Como foi o teu dia? Alguém a quem me queixar das dores-de-cabeça. Alguém que se preocupasse comigo, alguém que me perguntasse Queres uma canja de galinha? Um Brufen? Um Antigripine? Mas não tenho vida suficiente para ter vida nela. Só consigo ganhar o suficiente para a minha solidão. E assim vou seguindo em frente. A ver até onde consigo chegar.

[escrito directamente no facebook em 2019/11/25]

Estou na Estatística

Faço tudo aquilo que esperam de mim.
Lavo os dentes depois de comer, antes de deitar e depois de acordar. Corto as unhas dos pés e das mãos com regularidade. Tomo banho de duche todos os dias, às vezes mais que uma vez por dia. Lavo o cabelo no banho, em todos os banhos. Corto o cabelo uma ou duas vezes por ano. Faço a barba todos os dias e trago a cara limpa, fresca e lavada. Também lavo as orelhas e limpo os ouvidos.
Trabalho. Pago os meus impostos. Pago a renda da casa, a electricidade, o gás, a água, o telefone, o cabo.
Cozinho em casa e, às vezes, almoço ou janto fora. Como pão sem glúten, manteiga sem sal, queijo light, maçãs de Alcobaça, pêras do Bombarral, cerejas do Fundão, tangerinas do Algarve, bananas da Madeira, carne de porco pata negra de Barrancos, fumeiro de Montalegre, bebo leite dos Açores, vinho do Alentejo e espumante da Bairrada.
Gosto de Pastéis de Nata e de Bolas de Berlim. Também gosto de Pastéis de Tentúgal. E de rissóis, croquetes, pastéis de bacalhau e de massa-tenra e de chamuças.
Ao almoço como sempre um prato de sopa.
Bebo um litro e meio de água por dia. Engarrafada e da torneira.
Bebo café. Três por dia. Às vezes quatro. Um bagaço e, por vezes, uma aguardente velha.
Passo férias na Costa Alentejana, em São Pedro de Moel e em Moledo.
Vou regularmente ao cinema. A um concerto ao vivo. E ao futebol.
Compro móveis em Paços de Ferreira, sapatos em Oliveira de Azeméis e roupa no Vale do Ave.
Ando a pé bastantes vezes e também de bicicleta.
Compro um jornal por dia. Leio um livro por mês. Leio poesia quando calha. Ouço música diariamente. Vejo séries na televisão e vejo os noticiários.
Voto.
Compro os postais da UNICEF. Dou dinheiro nas campanhas para o Coração, para o Cancro e compro o Pirilampo Mágico para ajudar a CERCILEI.
Estudei em colégios privados e na escola pública. Frequentei o politécnico e a universidade. Joguei andebol, futebol e futsal.
Casei e divorciei-me. Tive filhos. Sobrinhos. Amigos. E amantes.
Faço sexo quando calha.
Jogo todas as semanas no Euromilhões. Mas nunca me saiu nada.
Porra! Sou um português normal e estou na estatística.
Que mais querem?

[escrito directamente no facebook em 2018/03/01]