Saio do banho. Olho o espelho. Está embaciado. Limpo-o com a mão. Vejo-me lá reflectido. Digo Já não tenho dezasseis anos. Não, já não tenho dezasseis anos. Já não sei quantos anos tenho. Mas estão marcados no corpo. Neste corpo aqui à minha frente. Neste corpo já disforme e flácido.
Aproximo a cara do espelho. Abro a boca. Vejo os dentes. Já me faltam alguns. Tenho outros chumbados. Também devo ter algumas cáries. Há quantos anos não vou ao dentista?
Levanto o pouco cabelo que ainda me resta. Passo a mão sobre o couro. Sinto lá algumas crostas. Tenho feridas na cabeça. Não sei de quê. Nem qual o aspecto. Já as tentei fotografar com o telemóvel mas não consigo perceber.
Agarro na escova de dentes e na pasta e lavo os dentes. As gengivas doem-me. Faço sangue. Vejo sangue na escova. Cuspo sangue no lavatório. Tenho de começar a usar escovas suaves. Já não aguento as médias. Houve um tempo em que usava as rijas. Como estou diferente. Como está tudo diferente.
Limpo a boca à toalha das mãos. Depois percebo que o corpo ainda está molhado. Pego na toalha de banho e seco-me.
Demoro a secar o corpo. Já não sou tão rápido. Já não tenho a mesma destreza. No fim, estou cansado. Sento-me um pouco na borda da banheira. Estou cansado. Tomar banho já me cansa mas, o verdadeiro martírio é secar-me.
Não faço a barba. Nunca faço a barba. Aparo-a quando já está demasiado grande e me faz comichão. Nessas alturas tenho de usar os óculos de ver. Se não, não vejo nada. Ainda me corto. Ainda corto o pescoço. E depois será tarde.
Enquanto estou sentado na borda da banheira a descansar, o corpo dobrado, em esforço, vejo um fio de sangue a escorrer pela perna. Pego na toalha e limpo o sangue. A toalha fica suja de sangue. Procuro a ferida na perna mas não vejo nada. Preciso dos óculos. Tenho de ir ao quarto buscar os óculos. Não. À cozinha. Estão ao pé do computador em cima da mesa da cozinha. Mas também pode ser de uma ferida muito pequenina. Uma veia rebentada, por exemplo. Uma pequena borbulha. Aperto os músculos da perna. Já não volta a haver sangue. Pode ter sido algo esporádico. Uma pequena ferida ao limpar o corpo com a toalha de turco.
Levanto-me. Passo pela balança e coloco-me lá. Noventa e sete quilos. Estou gordo. Já não vejo a pila. Para o uso que lhe dou, não é muito importante vê-la. Mas deixa-me triste. Leva-me ao passado e deixa-me triste. Lembro-me de como era há muitos anos e fico triste.
Saio de cima da balança. Saio da casa-de-banho. Vou até à cozinha. Sento-me à mesa e acendo um cigarro. Olho para os azulejos já não muito limpos. Olho para eles como se fosse uma televisão. Vejo lá a minha vida em retrospectiva. Sinto o frio das lajes da cozinha nos pés e digo Sabe-me bem.
Desvio a cabeça para a bancada de mármore e vejo um tupperware grande, grande e redondo. Lembro-me do gaspacho que a vizinha me veio trazer. Já tenho jantar. Até me trouxe uns pedacinhos de presunto e pão frito. Devia lá ir agradecer. Sim, devia lá ir agradecer. Já não tenho dezasseis anos mas ainda sei como se faz.
[escrito directamente no facebook em 2022/09/10]