Já Não Tenho Dezasseis Anos

Saio do banho. Olho o espelho. Está embaciado. Limpo-o com a mão. Vejo-me lá reflectido. Digo Já não tenho dezasseis anos. Não, já não tenho dezasseis anos. Já não sei quantos anos tenho. Mas estão marcados no corpo. Neste corpo aqui à minha frente. Neste corpo já disforme e flácido.
Aproximo a cara do espelho. Abro a boca. Vejo os dentes. Já me faltam alguns. Tenho outros chumbados. Também devo ter algumas cáries. Há quantos anos não vou ao dentista?
Levanto o pouco cabelo que ainda me resta. Passo a mão sobre o couro. Sinto lá algumas crostas. Tenho feridas na cabeça. Não sei de quê. Nem qual o aspecto. Já as tentei fotografar com o telemóvel mas não consigo perceber.
Agarro na escova de dentes e na pasta e lavo os dentes. As gengivas doem-me. Faço sangue. Vejo sangue na escova. Cuspo sangue no lavatório. Tenho de começar a usar escovas suaves. Já não aguento as médias. Houve um tempo em que usava as rijas. Como estou diferente. Como está tudo diferente.
Limpo a boca à toalha das mãos. Depois percebo que o corpo ainda está molhado. Pego na toalha de banho e seco-me.
Demoro a secar o corpo. Já não sou tão rápido. Já não tenho a mesma destreza. No fim, estou cansado. Sento-me um pouco na borda da banheira. Estou cansado. Tomar banho já me cansa mas, o verdadeiro martírio é secar-me.
Não faço a barba. Nunca faço a barba. Aparo-a quando já está demasiado grande e me faz comichão. Nessas alturas tenho de usar os óculos de ver. Se não, não vejo nada. Ainda me corto. Ainda corto o pescoço. E depois será tarde.
Enquanto estou sentado na borda da banheira a descansar, o corpo dobrado, em esforço, vejo um fio de sangue a escorrer pela perna. Pego na toalha e limpo o sangue. A toalha fica suja de sangue. Procuro a ferida na perna mas não vejo nada. Preciso dos óculos. Tenho de ir ao quarto buscar os óculos. Não. À cozinha. Estão ao pé do computador em cima da mesa da cozinha. Mas também pode ser de uma ferida muito pequenina. Uma veia rebentada, por exemplo. Uma pequena borbulha. Aperto os músculos da perna. Já não volta a haver sangue. Pode ter sido algo esporádico. Uma pequena ferida ao limpar o corpo com a toalha de turco.
Levanto-me. Passo pela balança e coloco-me lá. Noventa e sete quilos. Estou gordo. Já não vejo a pila. Para o uso que lhe dou, não é muito importante vê-la. Mas deixa-me triste. Leva-me ao passado e deixa-me triste. Lembro-me de como era há muitos anos e fico triste.
Saio de cima da balança. Saio da casa-de-banho. Vou até à cozinha. Sento-me à mesa e acendo um cigarro. Olho para os azulejos já não muito limpos. Olho para eles como se fosse uma televisão. Vejo lá a minha vida em retrospectiva. Sinto o frio das lajes da cozinha nos pés e digo Sabe-me bem.
Desvio a cabeça para a bancada de mármore e vejo um tupperware grande, grande e redondo. Lembro-me do gaspacho que a vizinha me veio trazer. Já tenho jantar. Até me trouxe uns pedacinhos de presunto e pão frito. Devia lá ir agradecer. Sim, devia lá ir agradecer. Já não tenho dezasseis anos mas ainda sei como se faz.

[escrito directamente no facebook em 2022/09/10]

Imperfeições

Estou deitado sobre a cama aberta. Os lençóis enrolados, ao fundo da cama. Estou nu. A pila descaída de lado. Está mole. Como eu. Como o dia.
Na parede em frente, um aparelho de ar condicionado marca vinte e dois graus numa luz branca, digital. Aguardo que chegue aos vinte graus que marquei no comando. Mas tarda em chegar. Por baixo do aparelho de ar condicionado, na parede em frente, num canto criado pela box da casa-de-banho, um móvel antigo, um guarda-fatos feito numa antiga fábrica de móveis, de madeira rija e pesada, todo trabalhado. O guarda-fatos está quase vazio. Guardo, no interior, numa pilha bem arrumada, a roupa suja que irei levar para lavar quando me for embora e regressar a casa. Ao lado do móvel a minha mala com roupa lavada e toda a medicação que tenho de usar. Nestes últimos tempos descobri-me doente. O médico receitou-me uma série de comprimidos que nem sei para o que são. Sei que tenho hipertensão, embora eu não sinta nada de diferente em mim do que sempre fui. Mas se o médico manda, eu obedeço. Não tenho pretensões a médico nem a saber o que não sei. Não procuro no Google respostas que não entendo. Obedeço aos médicos que sabem mais que eu. Eu nem quero saber nada disto. Obedeço.
Mais à frente, perto da janela, encostado à parede lateral, um cabide de pé onde tenho pendurado um casaco que nem sei porque trouxe, com este calor que se tem feito sentir, a última coisa que preciso é de um casaco que me faça sentir numa sauna. Em baixo, na plataforma do cabide, umas sapatilhas. Ao lado, as botas que uso todos os dias. Preciso de as limpar. Preciso de pô-las a arejar. Por enquanto ficam como estão. Não tenho tempo, nem vontade, para estas acções de limpeza. Logo ao lado, a janela que abro de vez em quando para arejar o quarto e fazer sair este cheiro a homem, como a minha mãe costumava dizer.
Ainda em frente, na parede da box da casa-de-banho, mais próximo de mim, uma secretária tão caótica como a que tenho em casa. Um computador, a bolsa do computador, um pequeno saco com os cabos dos aparelhos tecnológico, o iPad, uma garrafa de litro e meio de água, o relógio de pulso que costumo ter na mesa-de-cabeceira mas que hoje larguei ali, um livro do Knausgärd que ando a ler há já algum tempo mas, para o uso, tem-me faltado tempo e vontade (a minha vontade anda em agonia), a bolsa com os produtos de higiene, sabonete, champô, desodorizante, fio-dentário, escova e pasta dos dentes, tesoura e máquina de fazer a barba, um chapéu de sol, uns óculos de ver e outros de sol.
Ao lado, a porta da casa-de-banho semi-aberta, através do qual consigo ver um pouco do espelho por cima do lavatório. Não consigo ver nenhum reflexo no espelho. Está escuro.
Estou deitado sobre a cama aberta. Os lençóis enrolados, ao fundo da cama. Estou nu. A pila descaída de lado. Está mole. Como eu. Como o dia.
Ao meu lado, de um e de outro lado, duas mesa-de-cabeceira. Cada uma com um candeeiro. Um deles está fundido. Tenho o telemóvel em cima de uma das mesas. Está farto de tocar mas não atendo. Não me apetece falar com ninguém. Não estou. Não estou para ninguém.
Levanto a cabeça e reparo na televisão pendurada na parede por cima da secretária. Já me esquecia da televisão para a qual nunca olho, mesmo estando sempre ligada na SIC Notícias com o som não muito alto.
Olho para a porta da rua fechada. Parece que está alguém para entrar mas não entra ninguém. Estou sozinho e assim vou ficar. O telemóvel volta a tocar e eu volto a não o atender.
Estou deitado sobre a cama aberta. Os lençóis enrolados, ao fundo da cama. Estou nu. A pila descaída de lado. Está mole. Como eu. Como o dia. Coço os testículos. Agarro na pila. Viro-a para o outro lado mas ela regressa ao mesmo. Quero dormir mas não tenho sono. Quero beber um copo de vinho mas está demasiado calor. Quero fumar um cigarro mas acabei o maço há duas horas.
O ar condicionado já marca vinte e um graus. Pouco a pouco chega lá. Bocejo. Viro-me de lado e descubro a parte mais bonita do quarto. Uma parede lisa, pintada de branco com uma racha que vai quase de cima a baixo. Gosto de pequenas imperfeições.

[escrito directamente no facebook em 2022/07/12]

Batem à Porta

Abro os olhos. Alguém bateu à porta do quarto. Já é de dia. Viro-me na cama. Viro-me lentamente. Sinto-me pesado. A cama está toda transpirada. Olho o relógio na mesa-de-cabeceira e vejo as horas. Bocejo. Voltam a bater à porta.
Tento afastar o lençol de cima de mim. A custo, empurro o meu corpo para fora da cama. Ergo-me e tenho uma ligeira tontura. Páro por momentos à beira da cama. Acalmo-me. Respiro fundo e percebo que me custa respirar. Não tenho falta de ar. Tenho o nariz entupido. Voltam a bater à porta, com mais veemência.
Levanto-me e amparo-me na parede em frente. Enfio os pés dentro dos chinelos. Arranco em direcção à porta. A meio, reparo que estou nu. Vejo a pila a dançar. A única coisa em mim que ainda dança. Deito a mão à cadeira e agarro nos boxers lá largados. Sento-me na cadeira e visto os boxers. Batem outra vez à porta. Parece que ouço uma voz. Talvez alguém esteja a dizer qualquer coisa mas, não consigo perceber o quê.
Levanto-me da cadeira e lanço-me no arrasto até à porta do quarto. Dou dois passos e páro. Começo a urinar. Começo a urinar por mim abaixo e não consigo parar. Sinto a urina a escorrer, quente, pelas minhas pernas abaixo. Formam uma poça de urina aos meus pés. Sinto-me corar. Ninguém viu mas eu coro, envergonhado. Novamente alguém a bater à porta. Alguém está impaciente.
Por momentos fico aqui parado. Não sei o que se segue. Não sei o que devo fazer. Então descalço os chinelos e dispo os boxers e deixo-os no chão a embeber a urina. Agarro na toalha de banho, pendurada nas costas da cadeira, limpo as pernas e enrolo-a à volta da cintura.
Caminho descalço para a porta. Lanço a mão à maçaneta. Batem de novo à porta. Eu abro-a. Do outro lado está um miúdo com uma bandeja com dois pães, dois pacotes pequenos de manteiga uma fatia de queijo e outra de fiambre, enrolados, um copo de sumo de laranja e outro de café.
Eu agarro na bandeja e agradeço. Digo Obrigado! O miúdo acena a cabeça e vai-se embora. Fecho a porta e trago a bandeja para dentro. Coloco-a em cima da mesa do quarto. Olho para o pequeno-almoço, para os boxers a envolverem a poça de urina e a porta da casa-de-banho aberta.
Vou tomar banho. Arrasto-me até à casa-de-banho. Ligo a água quente. Entro no poliban. Coloco-me debaixo do chuveiro a levar com as agulhas de água quente que me despertam o corpo. Encosto-me à parede do fundo e deixo-me escorregar até baixo. E fico aqui assim, encolhido, com a água a bater-me em cima.

[escrito directamente no facebook em 2022/06/13]

Há um Problema com a Matriz

O sol batia-me em cima e fazia-me transpirar. Sentia o cheiro da minha transpiração. Não tinha tomado banho. Nunca tomo banho quando me levanto de manhã se estiver a pensar em ir para a praia. Foi o que aconteceu hoje. Acordei com bom tempo, o sol pendurado lá em cima e nem uma nuvem no céu para não destoar. Vesti uns calções, pus a t-shirt da véspera que deixara caída no chão do quarto, e calcei as Havaianas. Peguei no carro e fui até à Nazaré.
Estacionei nas ruas traseiras, à sombra. Depois peguei no chapéu-de-sol que tenho sempre no porta-bagagens e abalei para à beira do mar. Já há zonas vigiadas na Nazaré. Havia várias bandeiras amarelas ao longo da praia. Havia uma bandeira verde junto às rochas. Foi para lá que fui. Espetei o chapéu, despi a camisola, estendi a toalha e besuntei-me de creme protector, factor cinquenta, no sítios possíveis, onde conseguia chegar com as mãos. Ainda olhei ao redor para ver se encontrava uma solução mas, não encontrei nenhuma. As costas ficaram protegidas da forma possível. Deitei-me na toalha. Isolei o som das poucas conversas que me chegavam. Não estava muita gente na praia. Mas também não estavam assim tão poucas. Estavam era bastante espalhadas ao longo do extenso areal na Nazaré, e não havia grupos grandes de adolescentes, normalmente os mais barulhentos. Só ouvia as pequenas ondas a bater na areia. Adormeci.
Acordei com a boca seca. Levantei-me e fui procurar uma pastelaria onde comprei uma garrafa de água de litro e meio e uma bola de Berlim com creme. Voltei para o chapéu, passei pela toalha, larguei a garrafa de água lá em cima e fui até à beira-mar. Molhei os pés. A água estava estupidamente gelada. Disse um palavrão sonoro. Ninguém me ligou. Ninguém me ouviu.
Havia um grupo de umas dez pessoas, de várias idades, a ter aulas de surf. Algumas das pessoas da minha idade. Fiquei a pensar que se calhar, ainda não era tarde para aprender a fazer surf. Decidi que, na próxima ida à Nazaré, ia procurar saber como é que seriam as aulas, quanto é que custariam e o que é que eu teria de fazer para além da ginástica que vi aquelas pessoas a fazerem, ainda na areia, antes de entrarem dentro de água e se sentarem em cima das pranchas, todas iguais, pintadas com as cores da escola, tal como as t-shirts que todos eles envergavam por cima dos fatos de neoprene. Eles não tinham frio. Eu estava a bater o dente com a água pelos joelhos. Mas era forte. Forte e teimoso. E avancei mais dentro de agua. Senti a água gelar-me a pila e ela a minguar. Ganhei coragem, contei até três, depois até cinco, voltei a contar até três, por seis vezes, contei até três por seis vezes, e lá mergulhei. Sobrevivi ao choque térmico. Dei uma braçadas ainda debaixo de água. Quando subi, inspirei rápido oxigénio e limpei os olhos. Olhei para trás, para a praia. Não mergulhei mais. Mas pus-me a nadar de regresso à praia. Saí da água, subi até à toalha e deixei-me lá cair.
O sol batia-me em cima e fazia-me secar. Sentia a pele do meu corpo a esticar. Os olhos fecharam-se de novo. Ouvia o som do mar lá muito ao fundo, distante, como se estivesse numa outra estória. Senti-me embalado. Adormeci.
Ainda não acordei. Já percebi que estou a dormir. Estou a dormir e não consigo acordar. Há um problema qualquer com a matriz. Eu tenho consciência que estou a dormir. Sei que preciso acordar. Estou a queimar-me demasiado. Mas não consigo despertar. Estou a debater-me comigo próprio. Quero gritar. Mando um grito mas acho que foi só no meu sono. Na verdade, ninguém me ouviu. Não me consigo mexer, mesmo estando a gesticular desvairadamente. Quero acordar. Quero acordar!
Já não sei qual é a verdadeira realidade. Se o sono onde me imagino a dormir, mesmo com consciência de que estou a dormir, se a tal realidade para onde quero acordar. E eu? Eu sou eu? Ou sou outra coisa qualquer? Estou mesmo na Nazaré? Estou mesmo deitado ao sol da Nazaré? Ou estou dentro do espectro de ondas hertzianas? Foda-se!…

[escrito directamente no facebook em 2022/05/08]

Terra de Terra Vermelha

Acordei bem disposto, com o frio dos dezassete graus centígrados do ar condicionado a refrescarem-me o corpo mas, bastou colocar o pé no chão frio da laje de cerâmica preta para me lembrar: Estamos em guerra!
Não, eu não estou em guerra com ninguém. Há uma guerra a acontecer, lá fora, longe, distante, mas perto porque o mundo global de hoje encurtou-nos as distâncias. De repente o mundo é um penico. Não compreendo a guerra. Muito menos no mundo de hoje. Tanto conhecimento e tão pouca humanidade. Não compreendo estes desejos imperiais. O homem que quer ter a maior pila de todos os homens. O homem deve ser livre e a liberdade dele não deve interferir com a de outro homem
Enfiei-me debaixo do duche frio. Nunca na vida pensei que conseguiria tomar banho de água fria que não fosse nos duches de praia e, no entanto, de cada vez que venho aqui, aqui a esta terra de terra vermelha e cheiro intenso, é um prazer dos diabos deixar o corpo gelar debaixo da água fria que me açoita o corpo.
Vesti-me. Tomei o pequeno-almoço. Uma sandes de fiambre e manteiga e um sumo de toranja, bem amargo por sinal. Bebi um café. Fumei dois cigarros. Li as notícias online. Depois vim trabalhar. É difícil concentrar-me quando tenho outras coisas na cabeça. Vou ao Facebook. Volto aos jornais online. Não gosto do que leio. Evito a televisão. Não quero ver as imagens. Já estou demasiado angustiado com tudo o que sei do que se tem passado.
Da janela aberta à minha frente vejo a rua. É Sexta-feira e a cidade está em polvorosa. Já é fim-de-semana. Começa na véspera. Na manhã da véspera. Há mais carros na rua. Talvez para permitir ir para qualquer lado ao fim do dia. Talvez para dar gosto ao dedo e conduzir um carro neste trânsito caótico. Ouvem-se poucas buzinadelas. Vêm-se poucos acidentes. Mas os carros andam loucos na rua. Para a maior parte desta gente a guerra é a do dia-a-dia.
Vou contando as horas. Vejo as mudanças de luz. O dia a ceder à noite. Aqui a guerra é outra. Uma guerra de sobrevivência. Todos os dias é preciso procurar o almoço e o jantar. Nada nunca está garantido. Nem um buraco no cemitério.
Por vezes passeio-me pela marginal junto à foz, onde o rio se mistura com o mar e penso como esta terra é bonita. E, no entanto, às vezes não parece. Acendo mais um cigarro. Tento diminuir a dor cá dentro.
Lá e cá é tudo vida. Gente. Gente que quer viver. Às vezes sinto desespero. Outras vezes uns laivos de esperança. Na maior parte do tempo, uma angústia que me consome cá por dentro.

[escrito directamente no facebook em 2022/02/25]

Estou Velho mas Não Estou Doido

Chegamos a velhos a somos todos iguais. Bom, quase todos. Em algumas coisas. Tornamo-nos lentos. O corpo fica deformado. E somos teimosos como burros. Fazemos o que queremos, quando queremos e como queremos. E as coisas são como dizemos que elas são e não aceitamos contraditório.
Claro que alguns velhos não acham que são assim. São uns choninhas, esses. Acham que ainda estão na idade de serem politicamente correctos e não levantar ondas à vista alheia, principalmente aos mais novos, com medo de sofrer represálias dos filhos e serem encarcerados nos lares terminais onde os velhos ficam amontoados a coleccionarem as doenças uns dos outros, e destinados a só verem a família no dia de Natal porque a quadra, o raio da quadra!, a isso obriga, temos de ser cristãos uns com os outros, mesmo que sejamos outra coisa qualquer, amizade entre os homens, prendas inúteis e sem jeito nenhum, alguma megalomania de uns mais extrovertidos, há quem coma que nem uma besta enquanto que, ao lado, há quem morra de fome e de frio, na solidão, em barracos que não são aquecidos e a prescindirem dos remédios para darem um presente à neta que vai acabar por mandar mais uma caixa para cima das outras, ou a nota de dez ou vinte euros que vai acabar em shots na noite de passagem de ano onde nem tempo terão para pensar nos avós, esse passado já tão velho e gasto e chato e nós, eles, são o futuro. Sim, eu sei, eu sou parvo por achar que as coisas são assim, e todos me vão dizer que não é assim, que toda a gente cuida bem dos seus velhos como cuidam do labrador que passa o dia inteiro na varanda do T2 no Cacém (e no Cacém nem deve haver labradores). Sim, de facto, estou a falar de mim. A única pessoa de quem me sinto realmente habilitado para falar, a única que conheço desde que nasceu, talvez mesmo antes de nascer, mas não tenho grandes memórias intrauterinas. Sim, sou igual a mim próprio, estou lento, lento de passada e de raciocínio, tenho o corpo deformado, os músculos vergados à gravidade, a pila mole, os pés e as mãos tortos, os dentes cariados, esburacados, partidos ou ausentes, às vezes cheiro mal da boca mesmo de dentes lavados, esqueço-me de usar o fio-dentário, a flatulência é uma constante, às vezes mijo-me sem perceber e sou teimoso, muito teimoso, porque sei que tenho razão e não me percebem, mas vejam, mesmo com toda a degradação do meu corpo, estou lúcido e a minha cabeça ainda funciona muito bem, bem melhor que muitas mais novas cheias de vícios e faltas.
Eu sei que me são simpáticos, sorriem-me quando passam por mim na rua, até me oferecem uma bica no café, quando o que eu queria mesmo era beber um puro malte sem gelo (sim, o médico não gosta muito destas minhas vontades, mas eu quero que o médico se foda! não é ele que vive a minha vida, não é?).
Eu sei que, todos os dias, no supermercado, a rapariga da caixa engana-me com os trocos. Eu pago em dinheiro e sou enganado. Mas eu já percebi o esquema. Hoje levo o revólver aqui, no bolso direito do casaco. Hoje não me engana mais. Posso estar lento, velho e gasto, como os ouço dizer, mas a minha cabeça funciona muito bem. E sei quando me estão a enganar. E eu não gosto que me enganem.

[escrito directamente no facebook em 2021/12/17]

O Caminho de Mãos-Dadas

A meio da manhã apareceu o sol que afastou as nuvens cinzentas com que acordei. Peguei numa chávena de café e fui fumar um cigarro para o alpendre. Os raios de sol caminhavam na minha direcção. Quando chegaram, já tinha acabado o café e apagado o cigarro. Fechei os olhos e deixei-me inebriar pela explosão de branco que tomou conta dos meus olhos. O calor era confortável e fez-me relaxar. Senti os braços tombarem. Eu desfiz-me na poltrona. Senti-me sorrir. Quis abrir os olhos mas já não consegui. Deixei-me ficar assim. Ou ir. Já não sei bem.
Então estava sentado na beira de um muro no parque de campismo do Pedrogão. À minha volta gente nova. Gente nova como eu. Muitos risos. Conversas cruzadas. Uma gargalhada. Depois um olhar. Um olhar que se cruzou com o meu e não fugiu. O olhar trouxe um sorriso. Senti-me tremer. Senti as pernas a perderem força. Ainda bem que estava sentado no muro. As mãos transpiravam. Deixei de ouvir a confusão de conversas, as gargalhadas, a respiração alheia e só vi a boca a mexer-se e ouvi, cristalino, a roçar-me a orelha, a pergunta Queres vir para a praia? e a minha resposta silenciosa tornada sorriso rasgado de orelha a orelha, e já não estava ninguém ali ao pé de nós, a solidão junto ao silêncio, só nós os dois, os nossos olhares, os sorrisos embevecidos, a caminhar juntos, sozinhos, pelo caminho de saída do parque, o passeio ao longo da estrada municipal, a entrada no pinhal e a estrada de terra batida que nos levaria à praia, e as mãos que se tocavam levemente, como quem não queria nada mas a querer tudo e, num momento de coragem anormal, a minha mão a agarrar a dela e ela a não tirar a mão e irmos o resto do caminho de mãos-dadas, já não estávamos no caminho do pinhal mas nas nuvens, eu estava nas nuvens e depois chegámos à praia e ela a querer ir lá para longe, Lá mais para o fundo, e eu a ir com ela, a caminhar pela areia quente e descermos até à beira-mar e depois fazer o caminho pela areia molhada e fresca, e eu ficar cansado e ela dizer finalmente Ficamos aqui, e eu sem perceber, a praia era a mesma e igual só que mais longe e só percebi quando ela se despiu e ficou nua e olhou para mim para que eu me despisse e eu olhei em volta e tirei os calções envergonhado, a cara vermelha e a pila fugida para dentro de mim e ela deu-me a mão e corremos para a água e mergulhámos e brincámos dentro de água, nadámos paralelos à praia que o mar era traiçoeiro e depois saímos e fomos estender-nos nas toalhas, os dois nus, e ela agarrou-me a pila na mão e disse que era para não me queimar e eu ri-me com os cuidados dela e adormeci, com o sol a bater-me nos olhos, a hipnotizar-me, o som das ondas ao fundo, a embalar, uma mancha branca nos olhos fechados, e depois…
Acordei já tarde. O sol já tinha caído para além do horizonte. Levantei-me. Ela não estava. E não havia ali nenhum sinal dela. Eu estava sozinho. Olhei a praia ao fundo e já não havia ninguém. A noite aproximava-se e eu pus-me a caminho, mas o caminho nunca mais acabava e o horizonte parecia fugir de mim.
Então abri os olhos e as nuvens já tinham regressado. Ameaçava chuva.
Levantei-me da poltrona do alpendre e olhei as montanhas ao fundo. Mal as via. E disse Já chove.

[escrito directamente no facebook em 2021/12/08]

Isto Não É a América

Se a história se tivesse passado na América, eu estaria encostado ao móvel onde estaria a televisão, a olhar para a cama vazia enquanto ouvia, no quarto ao lado, os vizinhos a foder, e bateria com tanta força na parede de pladur para que eles parassem de alimentar a minha inveja, que o meu punho faria um buraco na parede, eu virar-me-ia admirado, a televisão cairia ao chão e o vizinho do lado enfiaria a mão com um revólver pelo buraco, para me ameaçar, enquanto tapava o buraco com uma almofada e regressaria aos seus afazeres que eu já ouviria os lamentos da companheira Então?! Então?! Agora?! Agora não! e a história teria ficado por aqui.
Só que a história não se tinha passado na América, tinha sido aqui, em Portugal, eu não estava num motel, que os motéis, por aqui, regra geral servem para dar facadinhas no matrimónio, estava num Íbis, num andar alto, eu fico sempre num andar alto quando fico no Íbis, deitado sobre a cama, uma cama mole como umas papas Cerelac, com a CMTV ligada na televisão a tentar escapar ao barulho dos vizinhos do lado a mandarem uma foda e eu a pensar porque é que não foram para um motel, afinal, eram cinco da tarde, ninguém fode às cinco da tarde a não ser que esteja a martelar na infidelidade a 35 euros a tarde num motel das redondezas, e eu pus-me a bater com uma cadeira na parede, precisava de descansar e não estava a conseguir com toda aquela barulheira que vinha do lado de lá, a gaja gemia como o diabo, e pus-me aos berros Vão foder para a puta que vos pariu! quando aconteceu o silêncio, acabou aquele batuque cadenciado do quarto ao lado, larguei a cadeira, sentei-me na cama a arfar, maldita bronquite!, ouvi a porta do lado a abrir, uns passos, uns murros na porta do meu quarto e alguém a gritar Abre a porta, ó meu caralho! e presumi que o caralho era eu, espreitei pelo óculo e vi uma besta quadrangular, nua, com a pila a bailar à frente, solta, afastei-me da porta, sento o tipo a tentar deitar a minha porta abaixo sob o peso daquele corpanzil, abri a janela e espreitei, não havia possibilidade de fuga, se ainda fosse num motel na América! pensei, e olhei para trás no momento em que a besta quadrada abriu a porta do meu quarto de supetão, correu para mim, fiquei petrificado em frente à janela e, precisamente no momento em que a besta se lançou num salto sobre mim, eu virei o corpo, senti-o raspar em mim, tropeçar nos seus próprios pés e lançar-se no vazio através da janela aberta e ainda tive tempo de virar a cara para fora e vê-lo cair em voo picado até bater seco no asfalto do parque de estacionamento do Íbis e, num nano-segundo, o mundo ter parado de funcionar e aconteceu um silêncio sufocante, arfei, levei a mão ao peito, senti o coração disparado como se tivesse corrido a Maratona, bati-lhe, bati no peito, o ar recomeçou a entrar e a sair, e tive um lampejo de lucidez e peguei na carteira, no telemóvel, na mochila e no casaco e saí do quarto a correr até ao elevador e foi aí que parei e pensei Não estou na América!
Não, não estou na América. Acalmei. Toquei com o dedo no botão para chamar o elevador. Se estivesse na América não tinha que esperar pelo elevador. Sairia da porta do quarto directamente para a pick-up, e voaria do motel deixando, atrás de mim, o número de um Social Security falso, e ninguém me encontraria naquelas estradas infinitas de um país que não acaba nunca e está cheia de buracos onde um tipo se pode esconder e recomeçar a vida, com outro nome, outra família, outros amigos, outro ele próprio.
O elevador chegou. Abriram-se as portas. Entrei. Carreguei no botão do r/c. As portas fecharam-se. Não valia a pena correr. Toda a gente saberia quem eu era. E que era eu que tinha estado naquele quarto. O cartão de cidadão mostrado no check-in era mesmo o meu. Já toda a gente saberia qual era o meu carro e qual a matrícula, onde é que eu vivia, o que é que ali estava a fazer, naquele Íbis, e qual a cor das minhas cuecas, que são pretas, já agora.
O elevador chegou ao rés-do-chão. As portas abriram-se e eu saí. Havia grande azáfama. Gente a correr de um lado para o outro. Alguns gritos. Gente a falar ao telemóvel. Gente a sair pela porta da rua. Gente a entrar. Gente a chorar. Gente com medo e a chorar.
Eu saí do hotel. Caminhei até ao parque de estacionamento. Vi o corpo caído no chão. Vi sangue. Havia gente à volta. Gente admirada. Gente escandalizada. Havia gente a filmar o corpo. Eu acendi um cigarro e sentei-me num lancil a fumar o cigarro. Ao fundo, ouvi a sirene da polícia.

[escrito directamente no facebook em 2021/12/01]

Um Penico no Colo

O vazio.
A solidão do nada. Tudo escuro, acho.
Desperto. Tenho consciência disso. Abro um olho. Outro olho. Vejo um tecto. Não reconheço. Não sei onde estou. E então Ah! Porra! A cabeça! A cabeça! A cabeça cresce desmesuradamente e depois encolhe, tudo muito rápido, e explode em milhares de pequenos pedaços de merda que se espatifam na parede e escorrem viscosos para o chão. Fecho os olhos. Vejo estrelas, não no firmamento, à volta de mim. Abro de novo os olhos. A cabeça está no sítio mas está a girar como o carrossel da Feira de Maio, roda a cabeça, rodam os olhos, roda o estômago, até o estômago se manifesta, também está aos solavancos, provoca-me arranques, soluços, acho que vou vomitar, não sei onde estou, não sei para onde possa ir a correr, tenho de vomitar, sinto-o, sinto cá por dentro algo que sobe por mim acima e quer sair, e vai sair, e vou abrir a boca e despejar tudo onde for, dói-me tudo, a cabeça, as costas, o estômago, os olhos, sinto os lábios inchados, tenho o nariz entupido, sinto-me às voltas, estou enjoado e vou vomitar, tento levantar o corpo que descubro que está deitado, estou a ver o tecto de uma casa que não conheço, ergo-me e sinto que é agora, é agora que vou vomitar e aparece-me um penico de esmalte no colo, umas mão colocam-me um penico no colo, sobre um cobertor que me cobre, descubro-me nu, numa cama que não é a minha, uma cama que não conheço, e umas mãos agarram-me nas minhas e colocam-nas a agarrar o penico, para se assegurarem que eu sei onde o penico está e para onde devo vomitar e é no preciso momento em que a primeira golfada de vómito sai de mim que os meus olhos, ao procurarem o penico que as minha mãos seguram, passam por uma cara estranha mas que reconheço numa fracção de fracção de segundo, como a cara da rapariga da esplanada, a rapariga que me serviu as cervejas, a rapariga que me amparou quando eu caí, e então só tenho olhos para o interior do penico e para a mixórdia esponjosa e borbulhante, amarelada, que eu vou deitando boca fora e pelo nariz, sai tudo em golfadas, e que vai enchendo o penico em esmalte, a minha mãe tinha um, ainda me lembro de mijar, em criança, aos pés da cama, de noite, com a luz do luar a entrar pela janela, e eu a mijar no penico e a ver os pingos a salpicarem borda fora, para o chão alcatifado do quarto, e agora ele está aqui, eu tenho-o nas mãos, mas já não é o mesmo, este não encho com a pila, é com a boca, e já não vem da bexiga, mas do fundo das minhas entranhas, não sei que merda é esta que sai de mim, o que é que me aconteceu para me acontecer agora isto, e soluço, descubro-me a chorar, a chorar de medo não sei de quê, tenho convulsões, já não tenho grandes coisas a expelir mas ainda sai um fiozinho de espuma de dentro de mim, a cada convulsão, mais um fiozinho, arroto, arroto várias vezes, peido-me, sinto-me transpirado, tremo, as minhas mãos largam o esmalte do penico e sinto-me desfalecer, ando tanto à roda que me sinto ir, não sei para onde, para dentro de mim, fechar-me, fechar-me dentro de mim, procuro a escuridão, sinto-me voltar a cair na cama, caio de costas, vejo de novo o tecto desconhecido, sinto-me só, tão só, os olhos começam a fechar-se, eu sinto-me ir embora, sinto-me a, talvez, perder a consciência, procuro o vazio, o nada, a escuridão.
E, então, vou.

[escrito directamente no facebook 2021/11/22]

Para que Raio Serve um Domingo?

Abro os olhos e já é dia. Estou no buraco. No fundo do buraco da minha cama, enfiado debaixo do edredão e de um cobertor de lã que coloquei por cima do edredão. Está frio. Está muito frio. Não tanto como costuma estar nesta época do ano, eu nem faço nuvens de vapor ao respirar, mas talvez seja eu que estou com frio, talvez seja eu que me sinta gelado.
Estou enfiado no fundo do edredão e empurro o pé para fora. Ensaio o exterior. O pé chega fora do edredão e sinto-o congelar, encher-se de estalactites e estalagmites. Penso que vou perder o pé e puxo-o rápido de volta para dentro da cama. Sinto os picos de gelo quebrarem-se e começarem a derreter em contacto com o calor da cama. Forma-se uma poça. Sinto os pés molhados. Ouço os pingos da água a escorrer pelo colchão e caírem no soalho flutuante debaixo da cama. Digo para mim que estou a imaginar coisas. Não há poça de água nem pingos a caírem no chão. Está só muito frio, para mim.
Preciso de mijar. Já não o faço desde ontem à noite. Preciso de me levantar. Hesito. Mas tenho de ir. Forço o corpo a levantar-se e levo o edredão enrolado em mim. Procuro os chinelos. Está demasiado frio para ir descalço. Calço os chinelos e arrasto-me até à casa-de-banho.
Não consigo libertar as mãos. Estão dentro do edredão a agarrá-lo. Empurro o corpo para a frente e projecto a pila sobre a sanita. Depois vejo que a tampa está fechada. Digo Porra! alto, mas só eu é que ouço. Baixo-me com o edredão enrolado em mim e estico um dedo para fora do edredão para empurrar a tampa até cima. Depois, estico o corpo sobre a sanita, abro as pernas e tento pendurar a pila sobre a sanita. Começo a urinar. Vejo o vapor que a urina lança para o ar enquanto sai em jacto de mim sobre a sanita. Sinto um alívio a ganhar dimensão dentro do meu corpo. Descontraio. Relaxo. Digo um Ah! que se prolonga no tempo. Uma satisfação.
Sacudo-me abanando o corpo e vejo os pingos que se espalham pelos azulejos. Penso que a casa-de-banho deve estar a tornar-se uma pocilga mas, continuo a abanar o corpo, fecho o edredão sobre mim e vou até à cozinha.
Chego à cozinha, páro, olho em volta e pergunto O que é que estou aqui a fazer? Não me respondo mas sei que a resposta é Não sei! Não sei o que é que estou a fazer na cozinha. É Domingo e os Domingos são para estar em casa e se for Domingo frio de Inverno chuvoso, é para estar na cama, debaixo do edredão e deixar-me dormir para lá do razoável. Mas não está a chover. A verdade é que não sei qual é a serventia do Domingo. Para que raio um tipo quer o Domingo? É um dia estúpido, mal disposto. Um dia de não fazer nada. Nem tenho vontade de ler nem de ver televisão. Dantes ainda era o dia de ir ao futebol com o meu pai mas, agora, nem pai nem futebol. O meu pai já se foi há muito tempo e o futebol deixou de se jogar aos Domingos. Não quero ir à missa. Dantes, quando adolescente, ainda ia à missa para ver as miúdas. Hoje nem isso. Já não me apetece ver miúdas. Não me apetece nada. Não quero nada. Quero só aquecer-me dentro da cama e esquecer-me que estou vivo.
Dou uns passos em frente e chego-me à porta da rua. A pequena janela da porta está aberta. Olho lá para fora, para o alpendre, para o quintal, para as montanhas lá ao fundo. Está sol. Um sol lindo e radioso. Não há uma nuvem no céu. Só está frio. Encosto-me à porta e sinto o calor do sol acumulado na porta desde manhãzinha quando o sol nasceu. Sinto o calor da porta. Sinto-me aquecer. Sinto-me renascer. Viro-me de costas, encosto-me à porta e deixo-me deslizar até ao chão. Sento-me e deixo-me ficar ali assim, a sentir o calor do sol a entrar-me pelo corpo através da porta de alumínio que tão feia fica na casa.

[escrito directamente no facebook em 2021/11/07]