Os Jurados do ICA Perdidos nas Montanhas em Dia de Chuva

Estou à secretária, com o computador à frente, a tentar escrever um argumento.
Por cima da secretária há uma janela que se abre sobre as montanhas. Lá ao fundo, as montanhas brilham debaixo do sol. Há pequenos pontos sombrios na encosta provocados pelas nuvens como farrapos de algodão que circulam por lá.
Apetecia-me estar lá em cima na montanha.
Estou à secretária a tentar escrever um argumento para apreciação do ICA. Já sei que não vai dar em nada. Como sempre. Alguém vai olhar para este argumento e perguntar Quem é este gajo? Estória insípida, personagens bidimensionais, sem qualquer conteúdo de interesse filosófico ou social nem acutilância artística.
Eu levava os jurados do ICA para as montanhas e largava-os lá.
Depois sentava-me à secretária e começava a escrever Está um grupo de homens e mulheres perdidos na montanha. Está a chover. Não há estradas, caminhos ou trilhos. Algumas das personagens começam a chorar desesperadas. Uma das mulheres tenta acalmar o grupo e diz Temos de sair da chuva. Temos de encontrar abrigo. Mas um homem responde Estamos perdidos! Estamos perdidos! e começa a correr pela montanha abaixo, tropeça na raiz de uma árvore, espeta-se contra uma rocha e parte a cabeça. O corpo cai e desliza para baixo de umas silvas. Fica escondido. O resto do grupo passa por ali à procura do homem e não o encontra.
Estava sentado à secretária e tinha uns binóculos com que ia seguindo as deambulações dos jurados do ICA. E ia registando a sua história. Agora já era um thriller.
Se a estória continuasse a ser insípida e as personagens bidimensionais, o problema agora era dos jurados do ICA.
Mas não.
Estou à secretária, com o computador à frente, a tentar escrever um argumento.
Por cima da secretária há uma janela que se abre sobre as montanhas. Não está a chover, nem há nenhum grupo de jurados do ICA lá perdido, e nem morreu ninguém.
Estou à secretária e não tenho ideia para nenhuma estória para nenhum argumento.
Levanto-me da secretária. Sirvo-me um copo de vinho. Acendo um cigarro e vou até ao alpendre.
Ouço o barulho de uma mota a chegar a casa. É a carteira que vem trazer as contas para pagar.
Olho para a pá que está encostada à parede da casa.
A carteira desliga a mota, sai de cima dela, dirige-se a mim e diz Tenho aqui uma carta registada para assinar.
Eu largo o copo de vinho no corrimão do pequeno muro do alpendre, deixo cair o cigarro no chão, agarro a pá e penso Tenho estória.

[escrito directamente no facebook em 2018/05/31]