Pego no telemóvel, mas ele está exausto. Não aguenta mais uma simples abertura do Facebook. Morre-me nas mãos. Coloco-o à carga. E porque raio queria eu ir ao Facebook a estas horas, horas mortas onde não acontece nada nem ninguém é apedrejado em praça pública, está ainda tudo na ressaca do campeonato de futebol, na glória de Pedro Gonçalves, na convocatória de Fernando Santos e na final da Liga dos Campeões isenta de impostos e dedicada a quem, desta vez?
Pego no tablet e faço virar a páginas de forma mecânica. Nada me agrada do que lá tenho. Não quero ver. Não quero jogar. Não quero ouvir. Outra aplicação? Mais uma? E para quê? O cansaço instala-se. Não quero saber mais de novidades, apresentações, coisas novas bonitas e fantásticas que não preciso para nada e só me fazem babar pingos de saliva pelo canto da boca até adormecer de boca aberta, a ressonar, e acordar cheio de dores de costas por estar mal sentado.
Largo o tablet no sofá e sento-me à mesa, à frente do computador. O que é que vou fazer? O que é que quero fazer? Abro e fecho programas. Bocejo. Apetecia-me um arroz-doce ou uma fartura do Penim. Já me fizeram chegar a informação que a barraca das farturas já está em Leiria. E eu aqui, nesta cidade de brincar, a fingir que vivo, a pagar dois euros por hora para estacionar o carro num país em que o salário mínimo vale seiscentos e trinta euros. Levanto-me da mesa, deixo a tampa levantada, um programa qualquer a abrir, um programa que demora horas a abrir porque o computador está tão velho quanto eu, acendo um cigarro, pego na compilação Prosa de Mário de Sá-Carneiro e ponho-me a ler A Loucura, aberta assim ao acaso.
“Vou-te dar a maior prova de amor… Beija-me… dá-me a tua boca… preciso de coragem… de muita coragem… Ouve-me, compreende-me, e não tenhas medo: Vou despedaçar a obra-prima do teu rosto… torná-lo uma cicatriz hedionda, onde não se conheçam as feições… sem olhos… sem lábios… Vou queimar os teus seios… sujar para sempre a brancura imaculada da tua carne… E assim, um monstro repelente, continuarei a amar-te, amar-te-ei muito mais. Porque todo o tempo será para ver a tua alma… a tua querida almazinha… Não tenhas medo… não grites… não grites… Vais ser muito feliz… Vamos ser muito felizes… De hoje em diante, nenhuma nuvem obscurecerá o céu azul da nossa vida…”
Dou uma sacudidela na mão e mando a beata para o meio da sala. O cigarro consumira-se e a brasa queima-me os dedos. Enquanto sopro a queimadura, fecho o livro e penso no que acabei de ler e sai-me da boca, mais depressa do que chega à cabeça, Parece Lisboa! Parece que está a falar de Lisboa! Como se o acto de desconstrução da cidade proviesse de uma prova de amor. Doidos! Doidos é que são! Todos eles! Doidos!
[escrito directamente no facebook em 2021/05/20]