Preciso de Sair Daqui

Mexo o braço debaixo de água. Vejo-o a mover-se lento, travado pelo atrito da água. O sol brilha, reflecte no espelho de água e, por momentos, deixo de ver o braço. Mas sinto-o a flutuar. Suave.
Deixo-me cair na água. Flutuo. Sinto pequenas ondas passarem por cima de mim. Está calor. Sinto-me bem aqui.
Tenho os olhos fechados aos raios de sol. E no entanto vejo. Vejo gente a mergulhar. A saltar da pequena prancha meio-metro acima da piscina. Vejo as explosões provocadas pelas bombas humanas lançadas em peso sobre a água da piscina para molhar as cercanias. As miúdas fogem. Fogem a rir. Algumas ainda são salpicadas por pingos de água. Despem os vestidos que largam abandonados pelo chão e mergulham na piscina. Brincam. Riem.
Alguém manda uma bola grande, insuflável. É azul. Tem escrito Nivea. É uma gigantesca bola insuflável da Nivea. Saltita na piscina. Mãos lançam-na de um lado para o outro. Não pára. Não cai à água. Alguém mais afoito bate com mais força e a bola foge para longe da piscina.
Há música no ar. Uma música alegre, fresca, dançável. Sinto-me a bater o pé. Não sei onde. Não me vejo. Mas sei que estou ali. Sei que estou ali porque sou eu que vejo o que se passa. E sinto-me a bater o pé ao ritmo da música que paira sobre o jardim, a piscina, a multidão de gente jovem e bonita.
Um casal beija-se. Um pequeno grupo dança. Uma trupe de pequenos diabretes corre de um lado para o outro disparando jactos de água de pistolas e metralhadores de plástico.
Alguém passa com uma cerveja na mão.
Uma rapariga está deitada numa chaise-longue enquanto bebe um longo cocktail colorido e cheio de adereços à volta do copo.
Um rapaz está sentado no meio da relva a comer uma fatia de melancia. Pinga-se. O sumo da melancia escorre-lhe pelo peito. Duas raparigas sentam-se ao pé dele e cortam mais fatias da melancia e também comem. Uma criança aproxima-se de uma das raparigas e senta-se ao colo dela. A rapariga dá-lhe a comer um bocado de melancia. O miúdo trinca. Depois levanta-se e vai a correr ter com os outros miúdos.
Abro os olhos. O sol já está mais baixo. Vejo o azul do céu. Não há uma nuvem. O céu está limpo. Ouço o restolhar das pequenas ondas da piscina a bater nas margens. Ainda está calor. As folhas das árvores não se mexem.
Viro-me. Nado até ao muro. Ergo-me. Saio da água. Entro em casa molhado. Deixo um rasto de água no chão da cozinha. Abro o frigorífico. Agarro numa cerveja. Abro-a. Dou um grande gole. Vou até ao jardim com a garrafa na mão. Sento-me numa cadeira e olho a piscina vazia. O jardim deserto. O silêncio. Não, o silêncio não. Ouço as cigarras. O som das cigarras é a minha companhia.
Preciso de sair. Preciso de sair daqui. Preciso de ver gente. Preciso de conversar. Tocar em alguém. Preciso de um pouco de confusão.
Mas não me levanto. Continuo sentado na cadeira. Sinto a garrafa a escorregar-me dos dedos, não a consigo agarrar e cai sobre a relva. Ouço a cerveja a sair da garrafa. Mas não me levanto. Continuo sentado na cadeira. A olhar as pequenas ondas na piscina vazia.

[2019/06/24]

A Conversadeira de Eduardo Souto de Moura

Porto de Mós.
Sexta-feira. Fim-de-tarde.
Sento-me na Conversadeira de Eduardo Souto de Moura. A Conversadeira é uma poltrona dupla com assentos em oposição, feito em Mármore Rosa com Veios Verdes, e com 1220 x 650 x 850 mm de dimensões. Visto de cima forma um S.
Sento-me num dos lados e olho. Vejo um prédio. Um prédio sem nada de particular que o distinga dos outros prédios à volta.
Estando Porto de Mós rodeado de montanhas, esperava poder ver uma montanha, umas árvores, até o castelo apalaçado de estilo francês que domina a vila. Mas não. Nada. Um cruzamento. Estou num cruzamento.
Levanto-me e vou sentar-me do outro lado. Espero outra vista. Mas, porra. Um prédio. Outro prédio.
A Conversadeira de Souto de Moura está num cruzamento rodeado de prédios na vila de Porto de Mós.
Sinto-me desiludido.
Olho em frente. Um fila de carros. Um tractor. O cheiro a gasolina. Buzinas. Uma motorizada que ultrapassa a fila e entra na estrada com a facilidade da mobilidade. No passeio que circunda o prédio, uma rapariga empurra um carrinho de bebé. Ela pára. Olha para mim. Leva a mão à boca.
Eu ouço. Ouço atrás de mim uma sinfonia urbana. Travagem. Apitos. Buzinas. Derrapagem. Gritos. Chapa. Trambolhões. Explosões. Mais gritos. Choro.
A cara da rapariga vai mudando. Eu vou vendo o que se passa atrás de mim reflectido nas expressões da rapariga e nos sons que me vão chegando.
Acendo um cigarro e recosto-me na Conversadeira.
Percebo, na cara da rapariga. O tractor que passa no cruzamento e entra na outra estrada. Um carro que trava. Um polícia que apita. Um outro carro que buzina enquanto derrapa no asfalto. Uma mulher que grita. A motorizada que bate no carro que derrapa. O rapaz da motorizada que é projectado, passa por cima do tractor e vai aos trambolhões estrada fora. O motor de um carro que rebenta. Gente que grita. Em vários tons. Em vários momentos. Desencontrados. Uma criança que chora.
A rapariga leva agora as duas mãos à cara. Está assustada. Assustadíssima. Com medo. O carrinho começa a deslizar pelo passeio. Eu continuo na Conversadeira a ver tudo na cara da rapariga. A ouvir tudo atrás de mim.
Vêm mais carros que se enfaixam uns nos outros. Ouço a chapa a bater. O polícia é atropelado por um dos carros. O tractor passa por cima do corpo do rapaz da motorizada que está caído no chão. Chega um camião TIR, e eu ouço o barulho dos travões pneumáticos, aquilo parece que sopra, sopra chateado, e o camião leva tudo de arrasto até ao rio. Um dos carros cai.
O carrinho de bebé chega ao fim do passeio e começa a cair para a estrada. Eu levanto-me rápido da Conversadeira, corro, atravesso a estrada num ápice e agarro o carrinho de bebé antes dele cair do passeio. Levo o carrinho à rapariga que está em estado de choque a olhar para a confusão no cruzamento. Não liga nenhuma para o carrinho que tento entregar-lhe.
Ouço o barulho de uma ambulância a chegar e, finalmente, olho para trás. Para tudo aquilo. Mas tudo o que vejo é a Conversadeira do Eduardo Souto de Moura.
Porque é que se chama Conversadeira se naquele cruzamento ninguém ouve os próprios pensamentos?
Porque é que está ali, naquele cruzamento, rodeado de prédios banais?
É já noite.
O que é feito do meu cigarro?
Que raio faço eu em Porto de Mós?

[escrito directamente no facebook em 2018/09/07]