O Miúdo em Cima da Prancha

Faço a estrada toda até ao fundo. Até ao bairro dos pescadores. Estaciono o carro à sombra. Há sempre lugares vagos no bairro dos pescadores. As pessoas nunca vêm até aqui. Andam às voltas lá à frente, à procura de lugar. Nunca vêm para aqui. Eu encontrei vários lugares vagos. E à sombra. Num dia de sol e calor como o de hoje, é um luxo encontrar um lugar vago à sombra. E sem parquímetro.
Saio do carro. Mijo ali ao lado do pneu traseiro. Olho em volta. Não há ninguém. Não há ninguém a olhar para mim. Não há ninguém para me repreender.
Cruzo a estrada. Vejo os barcos parados na areia. Os barcos estão como estavam antigamente. Parados na areia. Arrastados até cá acima para que a praia-mar não os arraste lá para dentro do mar. Estes pescadores não podem pagar as docas. Puxam-nos cá para cima. Puxam-nos pela areia acima. E largam-nos por aí. Quando voltam ao mar, arrastam-nos de volta lá para baixo. É uma vida de cão.
Acendo um cigarro.
Vejo o mar lá em baixo. O sol bate-lhe nas águas e torna-o prata. Cega-me. Mesmo com óculos de sol, tenho de desviar o olhar.
Ponho-me a caminho. Caminho ao longo do passeio que contorna a marginal. À esquerda os automóveis em velocidade de passeio à procura de lugar vago. Andam às voltas para não irem para o bairro dos pescadores. É uma mania. Uma mania como qualquer outra. À direita, a praia, o mar. E à medida que me adianto ao longo da marginal, a praia vai ficando mais cheia. Cheia de gente. Cheia de corpos plantados ao sol. Corpos em luta no mar. Em luta por um pedaço de fresco das águas frias do Atlântico.
Aparecem as primeiras esplanadas na areia. Esplanadas que tapam a vista sobre a praia. Que tampam a vista sobre os corpos ao sol na praia.
Eu continuo pela marginal fora. Acabo o cigarro. Largo-o no chão. Acendo outro. Gosto de sentir o fumo a invadir-me os pulmões. Mesmo quando está calor. Mesmo quando tenho a boca seca. Gosto de ter um cigarro a queimar preso nos dedos. Gosto de ver o fumo que vou deixando atrás de mim. Gosto de puxar o fumo. Inalá-lo. Deixá-lo à solta dentro dos meus pulmões. Gosto de me intoxicar. Gosto do primeiro cigarro da manhã. O cigarro que me dá vertigem. Gosto mesmo de fumar. Gosto de fumar e de ver os corpos femininos estendidos na areia da praia. E sorrio. Sorrio de mim. Sorrio, de cigarro na mão e a olhar os corpos femininos, despidos, plantados ao sol, a queimarem-se, a bronzearem-se e a chamarem por mim.
Mas não foi por isto que vim aqui.
E continuo pela marginal fora.
Está calor. Um sol quente e muito brilhante. Mesmo com os óculos escuros franzo os olhos. Tenho dificuldade em abrir os olhos com todo este brilho.
Chego finalmente à zona onde estão os miúdos do surf. Abrando o passo. Olho lá para baixo. Para a beira-mar. Procuro-o. Olho para todos os miúdos. Quase todos, invariavelmente, de cabelo loiro. Um loiro moldado pelo sol a queimar.
E vejo-o.
Sento-me ali no paredão da marginal. Debaixo do sol. Olho para ele. Dezasseis anos de vida. Tem um corpo esguio. Musculado, mas não muito. Um corpo seco. Um corpo que vai ao mar de Verão e de Inverno. Um corpo que vai ao mar sempre que quer. Em cima de uma prancha. E eu vejo-o. Vejo-o cá de cima. Vejo-o a pegar na prancha e correr para a água. E pular para cima da prancha. E nadar. Levar a prancha para lá da rebentação. Para ao pé de outros como ele. E miúdas. Há uma miúda que se aproxima dele. Ele sentado na prancha. A ondular em comunhão com o mar.
Eu acendo outro cigarro. E vejo uma onda que se forma. Uma onda que se aproxima. E vejo-o a preparar-se para a apanhar. E vejo-o deitado na prancha. Virado para mim. A dar aos braços. A seguir na onda. A saltar de pés para cima da prancha. E a cavalgar a onda. E vejo-o a aguentar-se bastante. Percorrer um grande troço de mar. Na crista da onda. E aproveitar tudo até ela morrer e ele tombar, finalmente, da prancha abaixo.
Ele não me viu. Não me vê. Nunca me vê. Mas eu estou aqui a vê-lo. E vou ficar aqui até ser quase de noite. Ou até ele ir embora.
Gosto de o ver assim. Incógnito. Sem ele dar por mim. É um bálsamo. Uma felicidade que me inunda os dias.
Um dia também gostaria de saber andar em cima de uma prancha. Talvez ele me ensine.

[escrito directamente no facebook em 2019/05/29]

Subir o Tejo

Decidi subir o Tejo. À procura de… À procura de quê? Na verdade à procura de nada. Subir o Tejo e deixar-me levar contra-corrente. Ele desce. Eu subo. Mas há momentos em que nos encontramos. E nos amamos.
Passo a ponte. Deixo Lisboa e rumo à margem sul. Direcção Almada. Mas vou até Cacilhas. Vejo o que restou da Lisnave. Respiro a História. Muito do PREC passou-se ali. Agora morreu. A Lisnave está vazia. Cheia de fantasmas. Mas vazia. O rio continua lá. Vejo-lhe as ondinhas a bater nos ferrys que se resguardam nas docas abandonadas. Um dia há-de lá nascer algum empreendimento imobiliário. Qualquer coisa de luxo. À beira-rio. Talvez com um Espelho-de-Água. Lisboa em frente. Quem inveja quem? Definitivamente os operários já não moram ali. A margem sul já não é a mesma. A cintura industrial estrebucha. Ainda restam bolsas. Mas tendem todas a morrer.
Volto para trás. Deixo Cacilhas nas costas. Passo pela Cova da Piedade. Amora. É difícil voltar ao Tejo. Por onde vão as estradas? Quero subir o Tejo pela margem esquerda mas não é fácil.
Chego ao Seixal. Não sei onde é a Academia do Benfica. Não passo por lá. Vou ao rio. Vou directo ao rio. Vejo o estuário do Tejo. Garças. Muito trânsito. O Seixal parece a rotunda do Marquês de Pombal em noite de campeonato do Benfica. Tanto carro. Em fila. Gente. Muita gente. Motores a trabalhar. Tubos de escape a deitarem bufadas de gasóleo. Cheira muito a gasolina. Gasóleo. Combustível. Mas ninguém refila. Ninguém buzina. Há uma calma que estranho. Eu fico nervoso e, logo que posso, fujo dali e rumo a Alcochete.
Chego a Alcochete e vejo o rio ferroso. Não sei se aquela água tem ferro mas, a cor, sugere-me isso. Lembra-me o café-com-leite de Manaus, quando o Rio Negro se mistura com o Rio Amazonas. Alcochete parece uma terra-montra. Limpa. Arranjada. Pintada. Caiada. Restaurantes chiques com esplanadas cheias de gente com criancinhas. Há calma. Silêncio. Ouvem-se vozes. Límpidas. Claras como a localidade.
Sigo mais para cima. Perco o nome das terras. Umas misturam-se com outras. Eu misturo nomes. Esqueço outros. Invento ainda outros. Há uma grande confusão de terras, locais, gentes. Laranjeiro. Corroios. Paio Pires. Fogueteiro. Baixa da Banheira. Matosinhos. Não, Matosinhos acho que não é por aqui. Sinto-me baralhado. Ao Tejo é mais difícil de se chegar. Vejo-o. Sei que está lá. Ali. Corre-me paralelo. Mas tenho dificuldade em chegar até ele. Caído do nada, uma placa indica-me uma Praia Fluvial. Outra, um Miradouro. Uma outra ainda um Passeio Fluvial. De repente o Tejo está rico e puxa-me até ele. Afinal, não foge de mim.
Vejo. Observo. Respiro. Registo. E sigo.
Chego a Almourol. Estou na margem esquerda e chego a Almourol. Estou em frente ao castelo. Por cima dele. Num Miradouro abandonado. Uma estátua que me parece do Cutileiro, está altaneira, de guarda ao castelo. É a única coisa que se mantém de pé. Um bar fechado. Vidros partidos. Um vandalismo serôdio em paisagem de cortar a respiração.
Dou a volta. Vila Nova da Barquinha. E vejo Almourol por trás. É diferente. É outra coisa. Igualmente bonito. Tiro fotografias. Talvez as venda a turistas em Lisboa.
Apetecia-me mergulhar nas águas do Tejo. Aqui há muitos bancos de areia. Provavelmente conseguia cruzar o rio a pé. Pondero dar um mergulho. Mas vejo a água suja. Muitos mosquitos. Nuvens de mosquitos. Desisto. Vou comer um gelado num café de apoio ao visitante.
Volto à estrada.
Aproxima-se a noite.
Passo em Constância. Vejo o Zêzere beijar o Tejo. Sigo até Abrantes. Procuro onde ficar. Procuro onde comer. Estou cego. Não encontro nada. Se calhar a falha é minha. Provavelmente é. Por vezes tenho dificuldade em ver coisas que não estejam absurdamente plantadas à minha frente.
Zango-me.
Decido avançar mais uns quilómetros até ao Sardoal.
Vejo luzes. Luzes a convidarem-me. Encontro um sítio onde comer.
Páro o carro. Sento-me a uma mesa. Como uma bifana. Bebo um copo de vinho tinto. Antes de chegar o café, adormeço. Adormeço à mesa. Os braços tombados ao lado do corpo. Durmo ali mesmo. Sentado. À mesa. O café a arrefecer.
Irei acordar no dia seguinte e continuar a subir o Tejo. Prevejo subir até Vila Velha de Ródão. Prevejo avistar Espanha. Talvez vá até Almaraz. Olhar pela última vez para a Central Nuclear. E acreditar que vai fechar em 2020.
Gosto do Tejo. Da vida no Tejo. Mas há morte a rondar.

[escrito directamente no facebook em 2019/05/11]

Regresso a Cacilhas

Tempo de regressos. Refaço os passos do passado. Volto no tempo e faço-o presente. Mas já não é a mesma coisa. Já não são as mesmas coisas.
Algumas pessoas já morreram. Sei-o agora. Acompanhei através das redes sociais. Através dos jornais. Uns de doença. Outros… Outros encontraram-se com a inevitabilidade.
Passo a pé pelos sítios que eram os do costume e já não são mais. Sou estrangeiro. Sinto-me estrangeiro. O tempo rasgou-me daqui. As casas estão diferentes. Umas degradadas. Outras transformadas. As árvores desapareceram. As pessoas também. Não reconheço ninguém. Parece tudo novo. Castradoramente novo. Novo e limpo. O ar do tempo é outro. Quero acender um cigarro e sinto-me intimidado. Esta cidade está esterilizada.
Há mais carros. Mais motorizadas. Mais bicicletas. Até trotinetas largadas um pouco por todo o lado. Esta cidade parece a cidade das trotinetas. Mas quero uma rede wi-if de jeito e não encontro. Que cidade é esta? Que futuro mentiroso é este? Afinal, onde está a tecnologia? O futuro é brilhante mas assustadoramente asséptico. Quero fumar um cigarro e sinto que não o posso fazer.
Apanho o ferry. Vou até ao outro lado. À outra margem. Houve um tempo em que havia um tempo da outra margem. Na música. Nos jornais. Na história que fez andar este país. Mas o outro lado está parecido com o lado de cá. As cidades são outras. À primeira vista parecem melhor. Mais limpas. Mais seguras. Mas também mais iguais. O que distingue uma da outra? O que nos dão de diferente para além dos horizontes?
Fui à Lisnave. Passeei-me ao longo do gradeamento dos estaleiros que já não existem. Aguardam algum empreendimento de luxo. Uma varanda junto às nuvens a olhar a cidade branca.
Já nada resta lá dentro. Está tudo vazio. Rapado. Limpo. Há docas e tanques com água. Mas não há barcos. Nem operários. A revolução morreu. A revolução não chegou a nascer. Morreu estrangulada à nascença. Resta o vazio.
Vejo a enorme placa, em metal, imponente: Lisnave, no fim da Cova da Piedade. Gosto destes nomes. Cova da Piedade. Amora. Corroios. Fogueteiro. Baixa da Banheira. Apreendi-os com o futebol. E com a música. Acompanhava o meu pai a ver os jogos da União de Leiria por estes subúrbios industriais fora. Laranjeiro. CUF. Quimigal. Barreirense. E os festivais de música moderna. O que começou naquela pequena sala na Rua da Beneficência e se espalhou por salas de todo o país. Muitas nesta Margem Sul. Em Corroios.
Mas a Lisnave? Aquele espaço, aquela história, aquilo corta a respiração. Marca a época. A outra época. Que já não volta como eu não posso afinal voltar.
A verdade é que nunca fui um filho da Margem Sul. Nem da Lisnave. Apanhava ao cacilheiro para ir jantar ao Cais do Ginjal. Atira-te ao Rio. Ponto Final. Um burguês fruto de uma classe que se queria média. E agora? Agora sou o quê? Ainda vim cá ver um ou outro teatro mais Underground. Hoje é tão mainstream como a Cidade Branca. E já não há lugar para mim. Só cá cabem os iguais. Dar ao povo o que o povo conhece. Não é assim?
Não sou da Margem Sul mas tenho em mim as memórias dos outros. Amigos meus. Amores meus. Companheiros meus. Gente que fez uma terra. Que criou um mito. Moldou um mundo. E que se evaporou. E já nada resta que mereça ser alguma coisa. Mas fica tudo aqui. Aqui dentro. Aqui dentro de mim. Porque a história não morre. Mesmo que a luta estivesse perdida. Como a Lisnave. Onde estão os orgulhosos estivadores da Lisnave? Onde param os homens que um dia sonharam mudar esta terra?
Sento-me no Cais do Ginjal. Os pés baloiçam sobre a água suja do Tejo. Imagino a Maria Cabral, de sardas, a cruzar o rio num cacilheiro. E acendo um cigarro. Ainda se pode fumar em Cacilhas.

[escrito directamente no facebook em 2019/03/08]