Esquecer Tudo o que Nos Faz Sentir Mal

Íamos os dois estrada fora. Duas faixas. Nós sempre na faixa da direita, mais devagar, a apreciar a paisagem, o verde, o amarelo, o castanho, as casas perdidas algures, entre montes e vales e muitas nas encostas. Há sempre uma casa perdida na paisagem. Já não há paisagens virgens.
Era o primeiro dia de férias. Janelas abertas. Eu com o cotovelo pousado na janela aberta. Ela com os pés esticados sobre o tablier. Uma mania. Já tínhamos sido multados por isso. Por ela ir com os pés descalços colados ao pára-brisas. Nunca cheguei a pagar essa multa. Qualquer dia vão buscar-me a casa. Se eu lá estiver.
Éramos ultrapassados por camiões cheios de pressa que nos faziam tremer na deslocação de ar das suas ultrapassagens, em velocidade bizarra e colados a nós. Cheguei a pensar que podíamos ser chupados por um túnel de vento.
Ela acendia-me um cigarro. Outro para ela. Íamos assim, descontraídos, a fumar um cigarro, com o rádio a debitar uma qualquer música local que não percebíamos por causa do ruído do vento que vinha de fora e nos enchia os ouvidos.
Então, senti a mão dela, suave, sobre o meu braço descansado sobre a alavanca de velocidades. Olhei para ela que disse Preciso de fazer chichi.
Continuei a conduzir naquela velocidade quase sonolenta mas agora atento às placas de indicação de Estações de Serviço.
Odiava aquelas Estações de Serviço. Quer dizer, para encher o depósito de combustível, eram todas iguais. Mais cêntimo, menos cêntimo, esta marca ou aquela, normal ou aditivada, era só enfiar a agulheta no buraco do depósito e encher. Mas para comer e ir à casa-de-banho, eram todas muito sofríveis. A comida era cara e geralmente muito má. O pão era seco. A manteiga margarina. O queijo corrente. O fiambre era mortadela. As vezes até a Coca-Cola era Pepsi. Quanto às casas-de-banho, por mais que fossem limpas, estava lá sempre o papel com os horários de limpeza e a assinatura da funcionária responsável, nunca perdiam aquele cheiro entranhado a mijo, as retretes entupidas, a falta de papel-higiénico, as torneiras automáticas que não davam tempo de mudar a mão de um lado para o outro e os secadores que, por mais que as mãos ficassem lá por baixo a esfregarem-se, nunca ficavam secas.
Saí na primeira indicação. Não valia a pena escolher. Eram todas iguais. Entrámos mais uma vez em contra-mão no parque de estacionamento da Estação de Serviço. Nunca acerto com as direcções pintadas no chão, e entretanto apagadas pelos pneus dos milhares de carros que entram por ali diariamente, e as placas de trânsito com as suas mil-e-uma informações ao utente e qual-é-a-minha, porra?
Parei num lugar vago debaixo do sol escaldante. Nestas Estações de Serviço nunca há árvores. Ela tirou os pés a contra-gosto do tablier e enfiou-os nas Havaianas.
Saímos do carro.
Entrámos no bar da Estação de Serviço. Encostei-me ao balcão. Ela encostou-se a mim. De costas para o balcão. Abraçada a mim. A morder-me o pescoço. Eu pedi Duas Coca-Colas e un bocadillo de calamares cortado pela mitad. E ele respondeu Solo Pepsi. Ela riu-se. E eu disse Entonces, puede ser.
Ela deixou-me encostado ao balcão, e foi, a rir, em direcção à casa-de-banho. Eu mandei um grande gole na Pepsi. E disse Foda-se! Comecei a comer uma metade do pão com calamares.
Ela apareceu. Branca como a cal. Agarrou-se a mim. Estava a tremer. A tremer que nem varas-verdes. Caíam-lhe gotas de suor pelas têmporas. E eu perguntei O que foi? e ela encostou-se mais a mim, aproximou a boca do meu ouvido e disse, num sussurro quase inaudível, assustado, quase-morto Acho que está um feto morto na casa-de-banho. No meio do caixote de lixo. Era assim uma coisa… E começou a chorar. A chorar baixinho.
Eu tirei uma nota de dez euros do bolso. Larguei-a no balcão. Agarrei na outra metade de pão com calamares, em vários guardanapos e saí do bar, com ela agarrada a mim, a querer cair por mim abaixo, a querer desmaiar, a querer adormecer e despertar de um horrível pesadelo.
Entrámos no carro. E arranquei, de novo, pela estrada fora.
Levávamos as janelas abertas. A rádio desligada. Ela não falava. Eu não dizia nada. Continuámos em silêncio. Continuámos em frente mas já não sabia se queríamos ir para onde íamos.
Às vezes basta um pequeno acidente no percurso para nos mudar a vida. Para o bem ou para o mal. Para nos mudar, com certeza.
Já não somos os mesmos depois da paragem naquela Estação de Serviço. Mas também ainda não sabemos o que é que somos. Ainda estamos a processar as coisas. Estas coisas que nos acontecem. E não pedem autorização para acontecer. E nos mudam, assim, de repente.
Parei o carro à beira da estrada. De um lado e outro, descampado. Ao fundo, o touro da Osborne. Eu mijei virado para o touro. Quando regressei ao carro, vi que ela estava agachada entre o carro e a porta aberta. Eu entrei no carro. Ela também. O carro arrancou. Ela acendeu um cigarro e deu-mo. E depois acendeu outro para ela. E fomos, estrada fora, a fumar, a ouvir o vento a entrar pelas janelas abertas, e a tentar esquecer todas as coisas que nos fazem sentir mal.

[escrito directamente no facebook em 2019/08/20]