Ela Foi Embora e Levou (Quase) Tudo

Cheguei a casa. Estava vazia e em silêncio.
Vazia mesmo. Vazia de quase tudo. Ela foi embora e levou tudo. A cama. A mesa da sala e as cadeiras. A mesa da cozinha e as cadeiras. Os quadros. Os quadros que os meus amigos pintores me tinham oferecido. As fotografias. Mesmo as fotografias que eu tinha tirado, desapareceram das paredes. Volatilizaram-se. Até as prateleiras onde estavam os livros. Foram embora. Mas os livros, os livros ficaram. Até me ri. Levou tudo menos a merda dos livros. Não sabia o que lhes fazer. Agarrei no primeiro que me apareceu. Mulheres de Eduardo Galeano. Levei-o comigo.
Dei uma volta pela casa. A olhar o vazio. Sentir a dor do vazio.
A sala. O quarto. A casa-de-banho sem papel higiénico. A dispensa vazia. A cozinha. Na cozinha tinham ficado a torradeira e a chaleira. Até uma cafeteira antiga, estava em cima do fogão. Mas não havia café. Nem manteiga. Nada. Nada para comer. Levou tudo.
Pousei o livro na bancada.
Abri o frigorífico. Quase vazio. Uma garrafa de vinho branco alentejano. Vidigueira. Mas já encetado. Foi por isso que ficou. Aberto não tinha valor.
Agarrei na garrafa. Abri a porta do móvel mas não havia nenhum copo. Tirei a rolha com os dentes, cuspi-a para o chão e bebi um gole pelo gargalo. Estava bom.
Pensei em ir para a sala. Mas lembrei-me que não havia sofá. Nem televisão. Tinha o computador porque o tinha levado comigo. Mas não me apetecia ligá-lo.
Fui até à janela da cozinha. Acendi um cigarro. Bebi mais um gole de vinho branco da Vidigueira.
Peguei no livro de Eduardo Galeano e li:
“Sukaina casou-se cinco vezes, e nos cinco contratos de matrimónio negou-se a aceitar a obediência do marido.”
Fechei o livro e desatei a rir. A rir feito tonto. Um riso que não conseguia parar. Um riso que me vez chorar, chorar de tanto rir, e foi então que disse, alto, a reverberar na casa quase vazia, repleta de livros, Estamos bem fodidos!

[escrito directamente no facebook em 2018/07/19]

Fui Defender o Pinhal do Rei e Não o Encontrei

Tínhamos acabado de jantar enquanto víamos as notícias dos incêndios no país. Ouvi que oitenta por cento do Pinhal do Rei tinha ardido. E esta notícia ficou-me na cabeça. A zumbir.
Fui lavar a louça. E quando ela fechou os estores da janela, fiquei irritado. Ainda havia luz no exterior. E gosto de ver as luzes coloridas que vêm lá de fora. Mas ela tem medo dos fantasmas que se aglomeram à entrada da janela para entrar em casa e chateá-la. Eu percebo-a. Mas irrita-me. E com esta história dos oitenta por cento do Pinhal do Rei estava realmente muito sensível. E gritei. Gritei-lhe. E ela foi sentar-se no sofá, sentida comigo que não a percebia.
Acabei de lavar a louça e fui até ao quarto. Sentei-me na cama e pensei no Pinhal do Rei. E nos oitenta por cento que arderam. E nos vinte por cento que restavam. Algo estava a nascer. Uma ideia. Uma vontade.
Fui debaixo da cama e retirei a AK-47 que tinha comprado aos tipos que assaltaram o arsenal de Tancos. Embrulhei-a numa toalha. Fui à cozinha e arranjei um farnel. Um naco de pão. Um bocado de queijo. Meio chouriço. Uma garrafa de vinho tinto das Cortes. Meti tudo numa mochila. E disse-lhe Venho tarde, e ela respondeu Tem cuidado, e eu fui, mas antes apanhei a metralhadora no quarto.
Pus a mota a trabalhar e arranquei. Fui para São Pedro de Moel. Ia procurar os vinte por cento de Pinhal que tinham sobrevivido.
Mas quando cheguei a São Pedro de Moel, percebi que ainda era de noite. Como raio é que ia descobrir os vinte por cento de Pinhal que não tinha ardido?
Parei a mota ao pé do Observatório Astronómico, que estava deserto, e resolvi descansar. Abri a garrafa de vinho tinto das Cortes e depressa dei cabo dela. Tão depressa que nem me lembro de ter acabado a garrafa, de ter adormecido e do dia ter chegado. Do que me lembro é que quando abri os olhos o sol já estava alto. Era tão grande a claridade que tive de colocar os óculos de sol. E foi aí que pensei de novo nos vinte por cento do Pinhal do Rei que tinham sobrevivido. Montei na mota e saí por ali fora à procura desses vinte por cento de Pinhal intacto. Quando o descobri, parei, escondi a mota e preparei a metralhadora. E pus-me a patrulhar a zona a pé.
Já ao final do dia, vi aproximar-se um jipe da GNR. O que raio é que eles aqui estavam a fazer? Deviam ter estado aqui era no dia do incêndio.
Mirei o jipe e disparei. Acertei na chapa. Os guardas assustaram-se e foram embora.
E pensei que ainda bem que eu estava ali. Não tinha de a aturar, a ela, e estava a defender aquilo que era meu. E o próximo que ali chegasse, levava com a mesma conta.
Agora, não há muito tempo, lá ao fundo, muito ao fundo da estrada, comecei a ouvir o barulho de camiões. Vários camiões, parece. O que será?

[escrito directamente no facebook em 2017/10/20]