Vai Ser Difícil Adormecer

Cruzo-me, no Facebook, com a fotografia de um pé, um pé sujo, a entrar dentro de um armário, talvez um guarda-vestidos.
Fico fascinado.
Olho o pé. A primeira coisa que me salta à vista é que está sujo, não muito, não me parece um pé porco, é tão somente um pé descalço que, possivelmente, caminhou pelo chão de uma casa sem tapetes. Depois percebo, pelo tamanho, pequeno, do pé, que é um pé de senhora. Talvez rapariga. Uma senhora ainda nova. Mas o melhor vem logo de seguida, o pé descalço prolonga-se por uma perna nua, clara, muito clarinha, uma perna que não tem visto o sol, uma perna nua, contorno-a, vejo as nuances, as sombras, imagino-a suave, macia, sedosa, que se perde depois atrás da porta do guarda-vestidos, na escuridão do guarda-vestidos, para além do meu olhar.
E para onde segue essa perna? Não sei, mas quero imaginar. Essa perna nua faz parte de um corpo de mulher, talvez rapariga, uma senhora ainda nova, vá lá, que está dentro do guarda-vestidos, nua, a pele um pouco arrepiada da excitação, à espera da abertura do portal que a vai levar a outro lado, talvez aos braços de um amante, de uma amante, talvez para um mundo de luxúria onde efebos leem poemas malditos e as mulheres se deleitam em mel e vinho e se deixam ir em estórias de fantasia sem fim.
Arranho o ecrã a tentar abrir a porta do guarda-vestidos. Quero ver o corpo daquele pé, quero ver o corpo nu que aquele pé me sugere antes que o corpo passe todo através do portal e o que restará será só uma memória de um pé, um pouco sujo, um pé que caminhou descalço por uma casa sem tapetes, um pé pequeno, um pé de senhora, talvez rapariga, uma jovem senhora, um pé que me prometeu sonhos loucos à noite, quando fechar os olhos e me lançar nos braços de Morfeu.
Toco com um dedo inadvertidamente numa tecla e o feed do Facebook salta várias páginas. Assusto-me. Tento voltar atrás. Procuro a fotografia. Procuro o sítio onde estava. Procuro o pé. Faço skroll. Vou às páginas onde o possa ter visto. Ando para baixo, para baixo, sempre para baixo à procura, mas não o volto a encontrar.
Fico preso a uma imagem fixa, um pé a fugir de mim para dentro de um armário escuro, um pé que fica ali parado, um pé que se transforma numa perna desnudada, fecho os olhos mas já não consigo ver para onde é que o pé e a perna se prolongam para além do início da coxa que ainda recordo de ver.
Perco o pé e a estória. Perco o meu sonho lindo e o embalo da noite.
Logo vai ser mais difícil adormecer.

[escrito directamente no facebook em 2021/05/12]

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