Depois do meu primeiro divórcio nem me lembrei de mudar o estado civil no BI. Mesmo de todas as vezes que mudava de casa, e mudei muitas vezes de casa, algumas ao fim de alguns meses e várias vezes ao longo de um ano, nunca me lembrei de mudar a morada na Carta de Condução. Quando precisava de ir ao centro de saúde, regressava a Leiria porque nunca tinha alterado a minha morada para Lisboa. E quando era tempo de votar, votava em Leiria, o que sempre me irritava, porque me obrigava a voltar à terra a um Domingo, dia chato, e a votar em gente que não conhecia ou conhecia mal. E sim, acabei por ser culpado de algumas merdas acontecidas em Leiria com a ajuda do voto popular. Votei sem saber. Mas mesmo assim, com essas constantes irritações e erros de análise por falta de conhecimento real da cidade, nunca alterei a morada nem o sítio onde votava, e ainda hoje voto.
Um dia ainda houve um guarda da BT que me avisou para alterar a morada da Carta de Condução, mesmo depois de eu argumentar que a morada existente era a morada dos meus pais, a morada onde eu tinha nascido e onde tinha vivido durante toda a minha vida até há uns anos, até ir para Lisboa, e que, no futuro, haveria de voltar a ser minha, por isso a morada, no fundo, até estava correcta. O guarda suspirou um suspiro de enfado, não sou gajo que mereça uma discussão, mandou-me embora sem contra-ordenação, mas a repetir Vá actualizar a morada! A verdade é que a casa dos meus pais deixou de ser a casa deles e consequentemente a minha e, no entanto, lá continua a morada, como se ainda fosse.
Foi uma noite em que estava a limpar a carteira de papéis do multibanco e recibos que não me serviam para nada e só entulhavam a carteira e a algibeira que, mesmo sem dinheiro, parecia obscenamente cheia, quando tirei os documentos para organizar tudo, ela pegou no BI para ver a fotografia Tão novinho! E magrinho! Já foste um tipo magrinho! E eras bem engraçado! E papável! e virou o bilhete e viu lá escrito a informação Casado. Casado? Estado civil Casado? Casado com quem, caralho? Comigo não!
E foi nessa noite que caiu o Carmo e a Trindade, fez-me dormir no sofá da sala, que ainda por cima era pequeno, muito pequeno para mim, e a meio da noite rastejei até à cama onde ela tremia de frio na minha ausência, para a abraçar e aquecer e lhe jurar a pés juntos que logo que fosse possível iria alterar o estado civil no BI. Tudo por ela.
Estava frio. Ela estava com muito frio. E acabou por anuir.
Durante vários dias não deixou de me avisar sobre a minha promessa. O meu estado civil era Divorciado, não Casado. Ponto. Já trataste disso? perguntava.
No dia em que apareci lá em casa com o novo BI onde já constava o Divorciado no estado civil, ela já se tinha ido embora. Ela e as coisas dela. Notei logo a ausência da escova de dentes e da Playstation.
Porra! A Playstation era minha.
Já casei mais duas vezes depois do primeiro casamento. Nunca mais alterei o estado civil no BI. Afinal, acaba por estar sempre certo.
[escrito directamente no facebook em 2020/11/19]
Estórias da Violência 